quarta-feira, 28 de junho de 2017

Quilombo Grilo: a terra prometida

Paquinha desde muitos anos trabalhou em terra alheia, da fazenda vizinha que rodeia o quilombo do Grilo. Nasceu aqui como sua família e seus avos, sempre na sujeição aos donos da terra a quem sempre pedia um corte de terra para plantar, numa dependência que os obrigava a aceitar qualquer condição. Sempre trabalhou na terra desde que seus pais lhe ensinaram o manuseio da enxada. Seu pai morreu de tanto trabalhar na terra, esgotando suas emergias numa lida desigual para dar conta da numerosa família. Nada mudava neste lugar porque lavrador sem terra é pau mandado pelos donos e pela situação, escravizados pela necessidade.
Mas a sina mudou quando finalmente os quilombolas do Grilo conseguiram a terra onde os antepassados trabalhavam como empregados. Foram anos de luta e resistência. O governo reconheceu o direito a terra que foi desapropriada e entregue pelo INCRA no março de 2016 aos quilombolas.
16 de março de 2016: imissão de posse da terra do quilombo Grilo
Paquinha está feliz da vida e não deixa seus roçados um instante. Paixão mesmo de quem ama a terra. Paquinha queria ter uma horta também e está ela aí, dando já dos seus frutos viçosos. A fartura está a vistas, por todo canto que o olhar se direcionar. A paisagem está linda: o terreno é acidentado, mas no meio das grandes pedras de granito a terra é muito boa e está cheia de lavouras a perder de vista. Já colheu feijão. Mostra com orgulho os vários tipos: macaçár, corujinha, sempre verde, feijão preto. O milho está bonito, bonecando e já tem também para assar na brasa os dias de S. João. A fava cresce consorciada ao milho, antigo casamento bem sucedido. Ainda dá para plantar o feijão faveta. O carioquinha está crescendo bem porque a chuva benfazeja não deixou ainda este torrão e a região vozinha. Este ano a chuva está senso uma benção depois de anos frustrados e amargos de seca.

por Luís Zadra














terça-feira, 27 de junho de 2017

MÃOS DE MULHER: AS MÃOS DE PAQUINHA

Estas são as mãos de Leonilda, uma quilombola do Grilo. Paquinha, como é chamada na comunidade, tem 55 anos, trabalha no campo, é pedreira e anima a comunidade. Esta mulher sempre nos surpreende: miúda, aparentemente frágil, mas com uma garra muito grande. O sofrimento foi sempre companheiro. As vezes a encontramos desanimada pelos problemas da comunidade e da família: mas a dureza da vida nunca lhe tirou a vontade de recomeçar, de ir para frente. Sempre acolhe as pessoas com um sorriso sincero e te olha nos olhos. Observo suas mãos calejadas, ásperas mas intensas no aperto.

“Paquinha, com estas tuas mãos ainda menina trabalhaste a terra: mãos calejadas e lavradas pelo tempo, quase da cor da terra. Com estas mãos cuidaste, acariciaste e mimaste quatro filhos. Arrancaste da terra muitas vezes árida e ingrata, terra alheia, não poucos frutos de um trabalho extenuante. Com estas tuas mãos enxugastes muitas lagrimas que te acompanham. Mãos operosas, incansáveis e generosas na construção de cisternas e casas, as casinhas coloridas agarradas ao granito do cume do Grilo. Estas mãos se abrem muitas vezes para partilhar os frutos do teu trabalho e muitos abraços. São um livro aberto que conta infindáveis histórias, escondidas nas dobras. São bonitas assim porque são verdadeiras".

terça-feira, 20 de junho de 2017

A chuva generosa - por Luís Zadra

Na medida em que adentrava nas estradas de terra dos quilombos, lá pelos meados de maio, um tormento tomava conta de mim ao me deparar com muitos plantios de feijão, milho, favas etc. que imploravam por chuva. As plantinhas estavam murchando por causa da seca e com elas a esperança de uma boa colheita.
Quatro anos seguidos de seca que estava novamente se perpetuando neste nordeste onde o fenômeno das grandes secas recorrentes sempre obrigou o nordestino a se tornar retirante para não morrer de fome.
O ano passado o quilombo Grilo, logo depois da conquista da terra em março, quis desafiar a seca plantando mais de quarenta hectares de terra depois de umas chuvas promissoras. Amigos dos quilombos ajudaram nesta tarefa. Tudo perdido: só colheram poucos quilos de feijão. Mas valeu a pena tentar porque permitiu aos quilombolas se sentir donos da própria terra, conquistada depois de anos de luta. Este ano se animaram e plantaram por conta própria mais terra ainda. Mas...finalmente chegou a tão esperada chuva, abundante e generosa e os plantios que já começavam a se perder renasceram com um verde intenso.
Afaga a alma ver tudo verdejante, a terra molhada. Estou muito agarrado a terra, ao destino deste povo que demasiadas vezes fica agarrado por um fio a vida. Dependem exclusivamente dos ritmos do tempo. Este ano vai ser farta a colheita.
Do alto do Grilo deixei que meu olhar espraiasse demoradamente pelos morros e baixios abaixo, contemplando os roçados cultivados que de vermelhos que eram se tingiram de verde. Respiro aliviado, profundamente, pensando na alegria dos camponeses. Mais uma vez experimentei a generosidade das pessoas genuínas que sabem agradecer sem dizer uma palavra, por meio do presente dos primeiros frutos: feijão verde, milho, jerimum que ao retorno carrego no carro.
Não tem dinheiro que pague esta sensação única do contato com os elementos primordiais do mundo: a terra, a chuva, as sementes e o fruto do trabalho das mãos. Quantas vezes afundei na terra molhada as mãos e pês para experimentar seu abraço materno.
Neste momento tão desanimador do nosso pais Brasil onde as esperanças se perdem no horizonte, é preciso se agarrar aos pequenos sinais de vida. Sentar numa tora de pau junto com os lavradores para ver seus sorrisos, a satisfação...é uma experiência única. O milagre da chuva que fecunda a terra e renova as esperanças. Vai ter fartura de milho nas próximas festas juninas e a festa será bonita e gostosa como as espigas de milho cozido ou assado na brasa.
Aqui a vida de lavrador é sempre um recomeçar; “amanhã será melhor é a frase que mais corre nos lábios deste povo teimoso em viver.

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quinta-feira, 15 de junho de 2017

O motocultivador de Marcelo

Marcelo e sua mãe Leonilda, do quilombo Grilo estão muito animados com o inverno. A comunidade toda plantou com força depois que o inverno pegou mesmo. Os roçados estão bonitos e verdejantes e a esperança de uma boa safra acalenta estas pessoas que por anos sofreram pela falta de terra e pela seca que sempre castiga o nordeste. Sempre plantaram em terra alheia e pouco lucraram. Até nos anos de safra frustrada tinham que pagar o aluguel da terra, sempre antes de plantar. Mas no ano passado finalmente conseguiram a terra e a história vai ser outra.

Marcelo se animou para comprar um motocultivador para adiantar o serviço que agora dobrou. Foi pensada uma maneira de pagamento na base da troca. Mãe e filho são pedreiros. Eles podem pagar o motocultivador com serviço para levantar a casa de Gerôncio que mora no assentamento Engenho do Meio. A casa dele de taipa está para cair e ele não tem condição de fazer sua casinha de tijolos tão sonhada. Com a ajuda de amigos conseguimos o material, o restante é com a mão de obra de Marcelo e Leonilda. Solidariedade, partilha, troca: são as palavras que definem estes momentos.

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quarta-feira, 14 de junho de 2017

A horta de Leonilda

A comunidade quilombola do Grilo plantou com força depois que o inverno pegou mesmo. Os roçados estão bonitos e verdejantes e a esperança de uma boa safra acalenta estas pessoas que por anos sofreram pela falta de terra e pela seca que sempre castiga o nordest. Sempre plantaram em terra alheia e pouco lucraram. Até nos anos de safra frustrada tinham que pagar o aluguel da terra, sempre antes de plantar. Mas em 2016 finalmente conseguiram a terra e a história vai ser outra. Onde, até o ano passado, as terras eram incultas e improdutivas, hoje surgem roçados e hortas exuberantes, entre eles também a horta de Leonilda.

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segunda-feira, 12 de junho de 2017

QUILOMBOS RESISTEM - Posse da terra ou fim de uma cultura: descendentes de escravos lutam pelas suas comunidades

Muitos grupos ainda não são oficialmente donos de seus territórios e enfrentam a ação de grileiros, mas algumas comunidades mostram que a posse da terra pode trazer desenvolvimento em vários níveis – já tem quilombola pós-graduado e que retornou para ajudar no crescimento do seu povo.

Reportagem: Wellington Ramalhoso
Direção de arte: Solenn Robic
Fotografia: Amanda Perobelli, Bruna Prado, Júlio César Guimarães.

A manhã é de sol às margens do rio Ribeira de Iguape, no sul do Estado de São Paulo. Sentamos à sombra com Benedito Alves da Silva, 62, o Ditão, liderança da comunidade quilombola Ivaporunduva.
Por um momento, ele imagina como seria a vida se não tivesse a parte que lhe cabe neste latifúndio chamado Brasil. “Não consigo viver numa cidade. Não estou preparado.
Se tivesse de ir, viveria como aquele pessoal enrolado com coberta na calçada ou disputando lugar embaixo de um viaduto. Isso para mim não é vida. Vivo bem no quilombo. Aqui sou uma andorinha voando livre.”
A cerca de 700 km dali, Tacira Alves, 74, compartilha do mesmo sentimento. Ela respira uma tarde ensolarada na Ilha de Marambaia, no Rio de Janeiro. Não há ar condicionado nem ventilador no quilombo. Uma brisa vem do mar e balança a copa das árvores. “Nosso ventilador sempre foi esse. O vento”, diz com graça Tacira, em frente à casa de pau a pique a poucos metros do mar. “Aqui a gente se sente gente. É livre.”

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O alívio transmitido por Ditão e Tacira pode ser considerado quase um privilégio perto da realidade da maioria dos grupos quilombolas do país. As comunidades nas quais eles vivem passaram a ser oficialmente donas das terras que ocupam só neste século, após décadas de ameaças e falta de garantia de posse dos territórios habitados desde o tempo da escravidão. “A terra é como uma mãe. Quando a gente morre, ela acolhe. E as gerações continuam tocando a vida dessa forma”, ensina Ditão.
Para as comunidades, a titulação de posse das terras é uma questão de vida ou morte. “Elas já estão nos territórios, não mudaram de lugar. E 90% estão lá desde a escravidão. Seria um título natural. O título é uma questão de sobrevivência e de permanência, para evitar ameaças que são constantes. Quando o Estado delimita, temos segurança”, afirma Ivo Fonseca, coordenador da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas Rurais) e integrante da comunidade Frechal, situada em Mirinzal (MA).
Perto de 3.000 comunidades remanescentes de quilombos já foram reconhecidas pela Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, desde os anos 1990. Há comunidades em 24 Estados – Acre, Roraima e Distrito Federal são as exceções.


Cerca de 1.500 recorreram ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para obter o título de seu território, direito previsto na Constituição de 1988. Porém, somente 295 conquistaram a titulação até o momento – as demais ainda esperam o desfecho dos processos.
As áreas quilombolas tituladas somam 7.548 Km², praticamente o quíntuplo do tamanho do município de São Paulo, mas uma fração pequena do território nacional, inferior a 0,1%.
Durante a escravidão, o quilombo era um refúgio onde os negros podiam se organizar e viver com alguma liberdade. Hoje, o quilombola sonha com o título da terra para formalizar a posse do que já é seu, pacificar conflitos, afastar as ameaças de grileiros e posseiros e o assédio de especuladores imobiliários. O quilombo também é uma alternativa de desenvolvimento econômico e de inserção digna de afrodescendentes na sociedade.


Fonseca diz estar em estado de vigilância em relação ao governo federal e a tentativas de mudanças nas leis. O decreto de 2003 que regulamenta o reconhecimento e a titulação das comunidades é alvo de uma ação movida pelo DEM, partido da base apoio ao presidente Michel Temer (PMDB). Empatado em um voto a um, o julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) está parado desde março de 2015 quando o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo, para analisar os documentos presentes nele.
O coordenador da Conaq critica o governo Temer e diz que o Incra foi orientado, desde 2016, a frear processos de titulação. Em nota, o órgão federal nega que isto tenha ocorrido e diz que as ações têm avançado. Também declara que, apesar dos cortes orçamentários, mantém “o compromisso com o reconhecimento do direito ao território das comunidades quilombolas”.
De acordo com a Secretaria de Políticas e Promoção da Igualdade Racial, ligada ao Ministério dos Direitos Humanos, a população quilombola é estimada em 502 mil pessoas. A maior parte vive em comunidades rurais.
“As comunidades negras rurais quilombolas buscam a autonomia. Suas aspirações são essencialmente camponesas: acesso à terra, a formação de famílias, o controle dos meios de produção e do processo de trabalho. Terra, família e trabalho são os objetivos primazes dos quilombolas”, diz o professor Carlos Alexandre Plínio dos Santos, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.


DO QUILOMBO AO MESTRADO 
O Vale do Ribeira é a região do Estado de São Paulo com o maior número de comunidades quilombolas. Em Ivaporunduva, no município de Eldorado (SP), vive Elson Alves da Silva, 34, um quebrador de tabus.
Formado em história e pedagogia após conseguir bolsas de estudo, é o primeiro quilombola pós-graduado da região graças a outra bolsa, esta da Fundação Ford. O apoio da instituição norte-americana permitiu a Elson tornar-se mestre em educação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e cursar um semestre do mestrado na Universidade de Arkansas, nos Estados Unidos.
Elson manteve a cabeça na própria comunidade e para lá voltou. Ajudou a escola pública de Ivaporunduva a incorporar conteúdos relacionados à comunidade. Integrante do conselho estadual de educação escolar quilombola e professor em um município vizinho, ele defende um currículo escolar que respeite a cultura comunitária.
“No nosso modelo de educação, pensamos em formar o cidadão para que ele entenda seu sistema de vida. Queremos que ele estude e adquira conhecimento, mas que permaneça na terra e preserve as raízes”, explica Elson, filho de Ditão.
“A sociedade ainda espera encontrar numa comunidade quilombola o negro trabalhando de tanga. O quilombola hoje é um cidadão comum, porém busca que direitos sejam reconhecidos e que sejam equalizados para todos. Para que possamos dizer que existe um país de igualdade.”


ORGÂNICOS E TURISMO 
De acordo com a Secretaria da Igualdade Racial, 70% das 163 mil famílias quilombolas do país recebem auxílio do programa Bolsa Família, mas em Ivaporunduva integrantes da comunidade dizem que a proporção é bem menor.
“A comunidade trabalha. Hoje muitas pessoas que viviam do Bolsa Família não querem mais porque têm seu trabalho e a autossuficiência”, ressalta Elson. Depois de uma fase em que recebeu apoio externo, Ivaporunduva também se tornou autossuficiente coletivamente, acrescenta Ditão.
Qual a fórmula? Avanço educacional, força coletiva, investimento em agricultura orgânica e turismo. Elson não é o único integrante da comunidade com nível universitário. Ao menos dez outros moradores se graduaram.
“Isso deu um avanço para a comunidade. Tudo aquilo que era feito por ONGs ou pelo governo federal hoje é feito pelos técnicos da comunidade”, diz o professor. “O saldo maior foi fixar o homem no campo, fazer com que as pessoas não tivessem necessidade de sair daqui para trabalhar. Para isso, a gente usou duas frases: ‘sair do eu e trabalhar o nós’ e ‘sair do meu e trabalhar o nosso’. Cada um tem sua plantação, mas a terra é coletiva e todos se juntam na hora de vender a produção. Depois cada um recebe de acordo com o que produziu”, conta Ditão.


O carro-chefe da produção e da receita de Ivaporunduva é a banana orgânica. A comunidade vende cerca de 600 mil kg de banana por ano.
Formada no século 17 em decorrência da exploração do ouro e incrustrada em uma área de Mata Atlântica, Ivaporunduva também gera renda significativa com o turismo histórico e étnico. Ela tem pousada, restaurante e recebe até 16 mil visitantes por ano, principalmente estudantes.
Fora do Vale do Ribeira, mas ainda no interior paulista, a comunidade Cafundó, situada em Salto de Pirapora, também tem investido em turismo e agricultura orgânica. Apesar de ainda não ter o título do território, a comunidade foi reconhecida como quilombola e obteve a concessão de uso da terra.


Quando chega a esses estágios, as comunidades conseguem participar de programas de apoio à agricultura. “Antes, quando a gente buscava apoio ou projetos, não podia ser beneficiado porque diziam que a gente não tinha garantia de que ia ficar no território. Com a concessão de uso, é meio caminho andado. Várias portas se abriram”, afirma a agricultora e artesã Regina Aparecidade Pereira, 58.
Cafundó atrai visitantes em maio quando realiza a centenária Festa de Santa Cruz, uma mistura de rituais católicos e manifestações culturais de raízes africanas. Distante uma hora e meia de carro da cidade de São Paulo, a comunidade também investe na construção de uma pousada.
Moradores mais antigos de Cafundó falam o cupópia, idioma baseado em línguas africanas como o kimbundu. O interesse do linguista Carlos Vogt, ex-reitor da Unicamp (Universidade de Estadual de Campinas), e de outros pesquisadores no fim dos anos 70 ajudou a dar visibilidade à luta que a comunidade travava pela preservação de seu território.


ÊXODO E RETORNO 
Quilombos como Cafundó viveram isolados por muito tempo, mas foram alcançados no século passado por grileiros, posseiros ou pela expansão das cidades. Saíram do isolamento e passaram a sofrer um cerco, o que provocou conflitos, mortes, ameaças e perda de territórios.
A cerca de dez quilômetros de distância de Ivaporunduva, a comunidade São Pedro também viveu este drama. Em 1983, dois moradores foram mortos a tiros. O assassino, segundo os quilombolas, foi um grileiro. Com menos espaço para plantar por causa das invasões, as comunidades do Vale entraram em declínio e sofreram um êxodo. Moradores migraram para cidades.


As comunidades certificadas pelo governo e sobretudo as que alcançaram a titulação do território têm conseguido reverter o êxodo. Os jovens da comunidade São Pedro são exemplos dessa volta às raízes. “Morei fora [da comunidade] dois anos, mas hoje não tenho mais vontade de sair.
Caiu a ficha de que consigo me sustentar com o que planto no quintal e com aquilo que a gente tem dentro da comunidade”, afirma Vanesa de França, 30, que se formou técnica em agroecologia.
A comunidade aposta na diversificação agrícola. Seus moradores participam da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira e vendem mais de 75 produtos, entre eles alguns tradicionais do território como arroz, batata doce, cará e mandioca, mas também palmito, hortaliças e frutas como maracujá.
“A diversidade é muito grande. Não consigo nem enumerar a quantidade de produtos que temos e vendemos”, diz Vanessa, engajada nos cultivos orgânicos. A produção de São Pedro chega a ser vendida na Grande São Paulo.


A volta ao campo e a expansão dos cultivos mudaram a rotina e o ambiente de comunidades como Ivaporunduva e São Pedro. No passado recente, elas eram menos movimentadas durante o dia. Os homens, principalmente, trabalhavam fora.
Hoje, homens e mulheres têm trabalho nas comunidades e convivem mais, dividindo tarefas nas plantações e em casa. Muitas casas já não são de pau a pique. Apesar de serem construídas em alvenaria, a maioria não é murada, o que ressalta o espírito comunitário, inclusive na educação das crianças.
“Voce tem uma comunidade que não tem muros. O filho do vizinho, o filho da minha prima são meus filhos também”, afirma Luiz Marcos de França Dias, 30, primo de Vanessa.
Luiz é o único morador de São Pedro com formação universitária. Com uma bolsa da organização não-governamental Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes), ele cursou letras em uma universidade particular na região de Campinas (SP), fazendo trajetória parecida com a de Elson, de Ivaporunduva.
Professor de português e inglês, Luiz também morou em São Paulo, mas hoje vive na comunidade e trabalha na escola quilombola de Eldorado. “As pessoas estão enfeitiçadas na cidade. É um feitiço que tem uma lógica e um fundamento no capital. Um dos meus objetivos é traduzir esse mundo doido lá de fora, que tem muitas questões técnicas, e decifrar e traduzir para que a comunidade possa compreender melhor. Tem que ter alguém que faça a ligação do ‘lá fora’ com o ‘aqui dentro’.”


ABOLIÇÃO INACABADA 
A recente declaração do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) de que não demarcará terras quilombolas e indígenas, caso se eleja presidente, revoltou moradores das comunidades como Luiz. “Quais são os únicos modelos de sociedade que destoam do capitalismo no Brasil? As comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas e caiçaras. Fugimos a essa lógica. Quando não se quer demarcar território, isso é uma repressão, faz parte ainda de uma abolição inacabada [da escravidão].”
Os moradores de São Pedro também reclamam da dificuldade de manter a coivara, tradicional sistema de plantio da região. Ele consiste na abertura de clareiras para cultivos. De tempos em tempos, a área cultivada muda de lugar, e a mata se regenera onde a roça é abandonada.
Por ser feito com pequenas queimadas, o método era vigiado de perto pela fiscalização ambiental. Passou a ser aceito quando pesquisas científicas demonstraram, já neste século, que ele também contribui com a biodiversidade.


Mas cada roça nova depende de uma autorização da Cetesb, agência ambiental do Estado. “É um processo de licenciamento moroso, muito burocrático”, comenta a bióloga Raquel Pasinato, coordenadora do programa Vale do Ribeira da organização não-governamental Instituto Socioambiental.
Quando a autorização demora a sair, os agricultores correm o risco de perder as sementes. “É muito ruim [a demora] porque as pessoas estão precisando comer, a plantação é para o seu sustento. É necessário construir um processo diferente para que as comunidades tenham mais autonomia.”
As comunidades da região também adotaram técnicas agroecológicas, frisa a engenheira florestal Laura De Biase, doutora em geografia pela USP (Universidade de São Paulo) com a tese “Agroecologia quilombola ou quilombo agroecológico? Dilemas agroflorestais e territorialização no Vale do Ribeira/SP”.
“Incentivados por experiências trazidas por ONGs e movimentos sociais, as comunidades vêm incorporando técnicas de cultivo agroflorestal que possibilitam a manutenção das roças numa mesma área por tempo indeterminado. E também têm incorporado posicionamentos socioambientais ao seu modo de vida”, afirma Laura.


PARAÍSO NO RIO 
A luta de quilombolas por seu território tem capítulos insólitos. Na Ilha de Marambaia, a comunidade foi alvo de 12 ações judiciais da Marinha, que considera a região estratégica para seus exercícios. Depois de anos sob risco de remoção, a comunidade pesqueira obteve em 2014 a posse e o direito de permanecer graças a um acordo costurado pelo Ministério Público Federal.
Viver em uma ilha paradisíaca não é simples. A Marinha mantém o controle da área, inclusive o transporte marítimo até o continente, restrito a duas viagens por dia. Pelo acordo, os quilombolas não podem explorar o turismo. O fato de ser uma área de preservação ambiental também impõe restrições.


Na cidade do Rio, a comunidade Sacopã sofreu ao menos quatro ameaças de remoção para o subúrbio desde os anos 1970 quando o poder público tirava favelas no bairro da Lagoa. O distrito se valorizou tanto que se tornou o terceiro mais caro do país - o metro quadrado só é mais baixo que o do Leblon e de Ipanema.
A comunidade resistiu, porém parte da nova vizinhança foi à Justiça para impedi-la de realizar atividades comerciais e culturais.
“Estamos aqui há 105 anos. Nossa vida é conturbada. Estamos proibidos de produzir porque acham que esta área não foi feita para nós”, afirma o cantor e compositor Luiz Sacopã, 75, líder da comunidade.
Depois de sofrer derrotas em uma ação de usucapião, a comunidade foi reconhecida como quilombola e espera a titulação do território. “Você luta contra os poderosos. Tem tráfico de influência. Enquanto você luta para arranjar para pagar um advogado, eles num telefonema, num e-mail, resolvem a questão. É uma covardia”, desabafa Sacopã, resumindo o calvário dos quilombolas.

Fonte: https://tab.uol.com.br/quilombos/#quilombos-resistem