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terça-feira, 8 de setembro de 2015

COM ESTAS MINHAS MÃOS: O ROÇADO DE LEONILDA de Luís Zadra

La pelo meio dia estou chegando ao Grilo e na mesma hora Paquinha (Leonilda) vem subindo do roçado, quase escondida debaixo de um chapéu preto, carregando nos ombros um saco de feijão recém colhido. Está feliz pela fartura que está logo abaixo do lajedo onde fica o quilombo do Grilo: feijão mulatinho, feijão preto, milho, jerimum e a fava que está florando. Faz questão de me mostrar seu pequeno tesouro, não tão pequeno, quase dois hectares plantados. Ao perceber seu grande desejo não consigo negar e vamos nós ladeira abaixo, num caminho de pura rocha.
Do alto da para espraiar o olhar para ver a extensão da terra que logo mais os quilombolas vão ocupar, fruto da vontade e da resistência. São quase 200 hectares. Nesta terra os antepassados colheram muita amargura pela escravidão que os sujeitava. O laudo realizado pelos antropólogos do INCRA foi aceito por Brasília que reconheceu o território ao redor do Grilo como território quilombola. O dinheiro já esta liberado para indenizar os proprietários. Leonilda, se chama tudo isto: ela soube enfrentar a arrogância dos donos, e a crítica do povo em geral da cidade que fica bem abaixo do quilombo. Leonilda respira fundo o ar que cheira a milho novo e feijão verde. A lavoura está bonita e farta e, para o fim de semana, Leonilda está organizando um mutirão para apanhar o feijão. “Se tivesse dado mais uma chuva o milho seria bem melhor, mas tá bom, tá muito bom”.
Os olhos de Paquinha brilham e um bocado de mágoas e ressentimentos ficam amenizados pelo roçado já ganho. Foram quatro tentativas de plantio: a última, quase do desespero, deu certo. Nordestino é teimoso: não desiste. Planta, replanta, planta de novo e quando não da, mesmo apela a Deus: “ Deus não quis”. Leonilda é uma mulher franzina, resistente aos muitos sofrimentos e arroubos que a vida lhe proporcionou: marido e um filho dependentes de álcool ao extremo, incompreensões de pessoas da comunidade. É extremamente generosa, dedicada a comunidade.
Com suas mãos plantou muitos roçados, criou filhos, construiu casas, cisternas (ela é pedreira também), organizou a comunidade para melhorar o acesso íngreme do quilombo. Esta mulher de mãos calejadas e pele negra, lavrada pelo sol e os tempos muitas vezes inclementes, não perdeu a capacidade de sorrir, de chorar, de não se conformar com as agruras da vida. Está sonhando com a terra que logo mais vai ser de toda a comunidade. Já pensou como limpar a cacimba, onde vai fazer a horta; “eu gosto do roçado, gosto mexer na terra, plantar, colher, para mim e para os outros”. A cabeça e o coração dela estão aqui e daqui ela não sai. Nunca no passado teria pensado que um dia poderia pisar na terra mãe, liberta e benfazeja.


Voltamos ladeira acima carregando feijão, milho verde e jerimum que ela me presenteia com muito carinho. O olhar se deleita no roçado encravado entre valas e pedras. Terra boa que de tudo da, mas que exige traquejo, teimosia. É o que não falta a esta mulher que está sempre em atividade, que as vezes amarga grandes sofrimentos mas que não perdeu o brilho dos olhos.
Eu gosto deste povo que tem um apego a terra, ao seu torrão onde os antepassados viviam escravizados pelos donos da terra que cobravam o foro e ainda exigiam que fosse deixado para os bichos da fazenda o que sobrasse depois da colheita. Este vai ser o capitulo final desta história passada que só trouxe amarguras: logo que tiverem colhido os legumes deverão deixar a palha para o gado do dono, pela última vez, a menos que a terra seja paga logo mais. Poucos acreditavam que este desfecho feliz poderia dar certo. Este povo sempre teve que engolir calado ofensas, desprezo e açoites.
Como a terra do quilombo Bomfim, esta também poderá ter nova vida, coberta de roçados, hortas e pomares, onde um povo liberto poderá plantar a vontade e colher do seu suor sem entregar aos donos uma parte do trabalho. Poderão sim partilhar com os mais fracos, não mais na marra, mas pela capacidade que ainda teima em viver no coração de muitos pobres.

sábado, 24 de novembro de 2012

20 DE NOVEMBRO: A CONSCIÊNCIA DOS NEGROS de Luis Zadra

Vagarosamente, num passo sofrido carregado de majestade ancestral, seu Domingos, negro da gema, nos seus 84 anos repletos de história, desce a rampa do MAC, o museu de Campina Grande. Era esperada sua presença para dar maior sentido a festa dos quilombos que vieram para comemorar o dia 20 de novembro, dentro da programação da exposição: Quilombos da Paraíba. 
Um pequeno cortejo de parentes e amigos do quilombo Os Rufinos (Pombal) segue o patriarca que abre caminho, segurando no seu cajado, dispensando o apoio de quem queira ajuda-lo. Encurvado pela doença na coluna que lhe reduziu também os movimentos das pernas, - sempre se queixa das pernas que não ajudam o espirito que ainda é forte -,  com a cabeça enfiada num chapéu preto de abas largas - companheiro inseparável como o cajado - só levanta o olhar para admirar a fotografia gigante, porta de entrada da exposição. Sim, o retrato de seu Domingos está exposto na parede, para dizer: estamos aqui, nós os quilombolas. Fez questão de participar da festa embora tudo dissesse que não daria certo. Depois de mais de quatro horas de van chegou esbanjando sorrisos e alegria. Os quilombolas de Barreiras (Coremas) vieram junto com outros amigos, apoiados pela universidade de Cajazeiras que disponibilizou o transporte.

A chegada de Seu Domingos
Seu Domingos e o painel de entrada da exposição
Seu Domingos indicando a foto com as netinhas
Grilo, Matias, Bonfim, Pedra D´Água, Matão, chegaram primeiro e já estão mostrando para que vieram. O branco das paredes do museu salienta a cor negra destes quilombolas que não dispensaram o convite de participar. Zé Pequeno trouxe uns companheiros que agora estão animando os chegantes com forró pé de serra, enquanto dona Lourdes agachada no centro do salão com suas mãos ligeiras da forma a argila que se torna vasilhas e panelas, repetindo e perpetuando a tradição que chegou da mãe África com o povo escravizado. Forma-se uma grande roda e os estudantes que vieram visitar a exposição escutam os testemunhos dos quilombolas e de pessoas que aderiram a causa quilombola. Nada aqui é artificial, tudo corre sem programa porque o que importa agora é deixar vibrar, cantar, falar o povo negro. Talvez não saibam o que signifique festa da consciência negra, mas este povo que antes não falava, que não podia frequentar lugares importantes, que não era valorizado, que para a sociedade não existia, agora se sente a vontade e brilha, como brilham os olhos de Paquinha quando conta com profunda emoção dos seus silêncios passados, seus medos, seus sofrimentos. E dona Lourdes que fala para a televisão. Sim, agora fala, pega no microfone e solta a palavra que sempre lhe foi negada pela sociedade branca. E seu Zé Pequeno não tem hesitação em dizer que os brancos massacraram demais o povo negro e lhe tiraram o direito de viver. Não desgruda do microfone quase para lavar a alma, lembrando e relatando para a juventude presente como foi sua infância e juventude no campo. Este povo quilombola está mudando, ocupando espaços, usando a palavra para afirmar que existe.
Foram anos de encontros, de visitas, de viagens, de tentativas, de superação enfim para o despertar da consciência. Foi ao longo do caminho que aprenderam a andar, para saborear o gosto da liberdade e da autonomia. Nada vem de graça, precisa muito amor para com este povo que quer viver. Muito caminho ainda resta a percorrer para a liberdade ser completa, mas o olhar vai longe e o desejo de dias melhores é bom companheiro.

Zé Pequeno com os companheiros músicos
A roda de conversa
Paquinha com as jornalistas
Dona Lurdes e as suas panelas na televisão
A direção do museu MAC junto com AACADE e o fotografo Alberto, que preparou todo o trabalho fotográfico, estão aqui para apoiar estes heróis, protagonistas de uma nova história que está se reescrevendo na Paraíba como no Brasil. Esta exposição de fato expõe, mostra a vida dos quilombos com suas mazelas, desafios e alegrias, o que mudou e precisa mudar para frente. Não estamos aqui para assistir ou olhar, mas para vivenciar a vida dos quilombos que querem um futuro. E a festa é vibrante ao toque forte do zabumba da Caiana que remonta ao toque dos tambores africanos. A ciranda do Grilo que está renascendo, o coco de roda e a ciranda da Caiana empolgam os visitantes que entram na roda porque o negro não discrimina ninguém. E seu Domingos olhando atento tudo e vibrando na alma porque pela primeira vez talvez esta cepa antiga do povo resistente está ao centro da sena, agora junto ao preto velho dom José Maria Pires que entra na ciranda porque este é o povo onde ele se reconhece e reencontra sua ancestralidade. Muitos jovens e crianças quilombolas estão participando sem receio porque não tem restrições nem limites. O museu por algumas horas se transformou num quilombo colorido e animado, onde a vida fala mais alto do que as conversas acadêmicas sobre quilombos.

Quilombolas visitando a exposição



Alberto com a prof.a Mércia e os seus alunos de antropologia
Dom José Maria Pires na roda da ciranda do Grilo
A ciranda de Caiana dos Crioulos

A capoeira de Matias