Membros da comunidade quilombola Senhor Bonfim preparam
cestas de alimentos para entrega na Paraíba.
Foto: Fernanda Quadros
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No início de dezembro deste ano, a comunidade, localizada a cerca de 120 quilômetros de João Pessoa, recebeu do Incra o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU), que funciona como um título provisório do imóvel. Senhor do Bonfim foi a primeira comunidade remanescente de quilombo da Paraíba a ter sua área destinada ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pela Justiça e a primeira do estado a receber o decreto presidencial de desapropriação por interesse social, assinado em 2009.
De acordo com Maria Ester Fortes, antropóloga do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra/PB, a comunidade ainda não recebeu a titulação definitiva, pois o processo de desapropriação de um imóvel incidente na área da comunidade ainda não transitou em julgado.
O pontapé inicial para a mudança radical na história das 22 famílias da comunidade foi a imissão do Incra na posse da área, que tem cerca de 122 hectares, em abril de 2011. Hoje, as terras pertencem à comunidade, que pode ter acesso a políticas públicas voltadas à educação, à saúde e ao desenvolvimento das atividades rurais.
Alimentos saudáveis
Um dos agricultores da comunidade, Luciano Gomes de Maria, 36 anos, contou que todas as famílias estão envolvidas na produção dos alimentos, produzidos de forma saudável, sem agrotóxicos e usando defensivos naturais, como a manipueira, o fumo e a planta Nim (Azadirachta indica). A comunidade encontra-se em processo de renovação do certificado de produto orgânico expedido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Parte da produção é comercializada nas feiras livres de Areia e de municípios vizinhos, como Remígio e Algodão de Jandaíra, e outra por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). As famílias também vendem sua produção semanalmente na primeira feira da agricultura familiar de comunidades quilombolas no Estado, inaugurada pelo Governo da Paraíba em maio deste ano, em Areia.
A entrega de cestas surgiu como mais uma forma de comercialização sem desperdício, com clientes fixos e valores justos, e respeito à sazonalidade da produção.
Cestas de alimentos
Foi iniciativa do Coletivo Gaia Parahyba levar os alimentos de qualidade produzidos pelos agricultores de Bonfim aos consumidores de João Pessoa por meio de cestas com dois tamanhos: pequena, suficiente para alimentar de uma a três pessoas, e média, para famílias com quatro pessoas. Já são cerca de 60 cestas entregues por semana e uma lista de aproximadamente 170 pessoas que já compraram ou querem comprar.
Elas são compostas por alimentos variados, respeitando o que é produzido em cada estação do ano, como coentro, salsinha, cebolinha, pimentão verde e vermelho, cenoura, cebola, alface crespa ou americana, espinafre, rúcula, hortelã, couve, macaxeira, limão galego e tahiti, banana e outras frutas.
“Estamos criando uma rede de consumo consciente e saudável, que considera a sazonalidade das produções e dá aos agricultores a possibilidade de comercializar sua produção de forma tranquila, com venda garantida”, afirmou Vivian Maitê.
As entregas das cestas são semanais e acontecem às quartas-feiras, das 16h às 20h, em dois pontos de João Pessoa, nos bairros de Manaíra e do Castelo Branco.
Os pedidos podem ser feitos até as 18h das segundas-feiras por meio do aplicativo de comunicação WhatsApp. O pagamento das cestas é feito por meio de transferência, deposito bancário ou à vista no ato da entrega.
Os alimentos são transportados à capital paraibana em um veículo adquirido pela comunidade por meio de um programa social e chegam ainda frescos aos consumidores porque são colhidos na noite da terça-feira e levados a João Pessoa no dia seguinte.
“Estamos muito agradecidos às pessoas que estão comprando as cestas. É mais uma forma de fortalecer nossa comunidade”, afirmou Luciano Gomes de Maria.
Recentemente, algumas famílias que adquiriram cestas comercializadas pelos agricultores de Bonfim visitaram a comunidade para conhecer as áreas de plantio e os sistemas de produção.
O dinheiro obtido com a comercialização das primeiras cestas está sendo empregado na ampliação da produção dos alimentos, mas, os planos futuros incluem, segundo o presidente da associação da comunidade, Geraldo Gomes de Maria, 41 anos, a aquisição de um caminhão do tipo baú refrigerado e a divisão dos lucros de acordo com a produção de cada família.
“É um grande sucesso sairmos do zero para onde nós estamos hoje”, comemora o presidente da associação. “Hoje as famílias já podem comprar uma televisão e chegar numa loja e comprar fiado sem medo”, disse, lembrando que antes as famílias viviam isoladas, sem televisão e telefone, e raramente saíam da fazenda.
“A nossa situação hoje é muito diferente. Nem dinheiro para comprar uma sandália a gente tinha. A gente andava descalço ou com sandálias rasgadas. Às vezes a gente só tinha um caldo de feijão para comer. Hoje a carne a gente quer ter todo dia”, afirmou Geraldo Gomes de Maria. “A insistência é tudo na vida!”.
Trabalho escravo
Luciano Gomes de Maria contou que antes, quando as terras onde viviam pertenciam aos donos do engenho, os homens da Comunidade Bonfim trabalhavam até 12 horas por dia no plantio da cana-de-açúcar e na produção de rapadura e de aguardente, numa condição que se assemelhava ao trabalho escravo. Obrigados a trabalhar no engenho de quatro a seis dias da semana em troca da moradia e de alimentos básicos que vinham da mercearia existente dentro da propriedade e também pertencente ao engenho, as famílias da comunidade, confinadas em cerca de 20 hectares, praticamente não tinham como produzir o próprio alimento e faziam pequenos roçados escondidos em meio ao canavial. “Era difícil chegar dinheiro na nossa mão”, afirmou.
As ameaças eram constantes, segundo Luciano Gomes de Maria. “A proprietária dizia que se a gente continuasse plantando nossas roças, ela iria tomar nossa casa e dizia que a gente estava lá para trabalhar para ela”, contou.
Quando a proprietária, que não tinha filhos, morreu, o novo proprietário conseguiu uma ordem de despejo das famílias. “Mas, não tínhamos outro lugar para ir”, disse o agricultor, revelando que muitos sequer conheciam a sede do município. Segundo ele, através de movimentos sociais do campo, a comunidade foi apresentada à Associação de Apoio aos Assentamentos e Comunidades Afrodescendentes da Paraíba (Aacade/PB), que orientou as famílias a procurarem a Fundação Cultural Palmares e o Incra/PB.
“A gente não gosta nem de lembrar do sofrimento que era a nossa vida. Agora temos liberdade e isto abriu as portas pra gente. A vida hoje é 100% melhor”, resumiu Luciano Gomes de Maria.
História de resistência
De acordo com Maria Ester, a propriedade que abriga o Engenho Bonfim, atualmente desativado, foi vendida em 2004, quando se transformou em área de conflito. Os novos donos tentaram expulsar os moradores, que estão na área há pelo menos três gerações.
Com o acirramento do conflito, e a partir do apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Pastoral dos Negros, a comunidade do Bonfim aos poucos adquiriu consciência de sua condição de negros e dos direitos que a sua relação com o território lhes conferia. Em dezembro de 2004, redirecionaram sua demanda, antes voltada para a desapropriação para a reforma agrária, e entraram com um pedido de certificação como comunidade remanescente de quilombo junto à Fundação Cultural Palmares, que emitiu a certidão de reconhecimento em 18 de abril de 2005.
Devido ao conflito envolvendo a comunidade e os novos proprietários, com ameaças inclusive a representantes do Incra, o processo de regularização fundiária ganhou prioridade em relação aos demais.
Políticas públicas
O que possibilitou a diversificada produção de alimentos excedentes suficientes para a comercialização foi a soma de vários projetos e políticas públicas coordenadas pelo Governo do Estado em parceria com a associação de moradores da comunidade e com a Aacade/PB.
Após o decreto de desapropriação por interesse social e antes mesmo da imissão de posse, as famílias passaram a ter acesso a políticas públicas como o Bolsa Família, a energia elétrica do Programa Luz para Todos, o Programa Arca das Letras (bibliotecas rurais) e o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), responsável pelas cisternas que garantem água potável a muitas casas do Bonfim.
Antes do reconhecimento como quilombolas, em 2004, as famílias da comunidade foram substituindo a cana-de-açúcar e estabelecendo uma diversidade considerável de culturas – a maior parte apenas para consumo próprio: diversos tipos de feijão (carioquinha, macassar, mulatinho, guandu), milho, mandioca, jerimum, quiabo, batata-doce, banana, laranja, caju, mamão, manga, jabuticaba, pitomba, goiaba, acerola, graviola, coco, limão, pinha, jaca mole e jaca dura, romã. Ao redor das casas há plantio de alho, coentro, fava e de plantas ornamentais e medicinais. São aproximadamente 7 mil pés de laranja-cravo (tangerina) e há famílias que criam, também para consumo próprio, animais como ovelha, vaca, porco e galinhas.
Recentemente, a comunidade quilombola Senhor do Bonfim transformou-se em um dos seis núcleos do Projeto Ecoprodutivo da Gestão Unificada Emepa/Interpa/Emater, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento da Agropecuária e da Pesca do Estado da Paraíba, que desenvolve ações para impulsionar a agricultura familiar no estado.
A comunidade é acompanhada por quatro extensionistas do projeto e já recebeu, desde o início de 2016, capacitações da Emater nas áreas de produção e manipulação de alimentos, apicultura, criação de ovinos e técnicas de inseminação artificial, e deve receber em breve duas matrizes de ovelhas e um reprodutor para iniciar um plantel coletivo, além de alevinos.
O plano de ação do Projeto Ecoprodutivo para Bonfim foi definido pela própria comunidade com a participação da equipe técnica da Gestão Unificada, da Prefeitura, de pesquisadores e extensionistas de órgãos parceiros, e inclui a ampliação da rede elétrica, a recuperação da antiga casa sede do engenho para atividades turísticas, o plantio de mudas florestais e frutíferas, como videiras, a implantação de uma cozinha comunitária e a adaptação de um abatedouro para o processamento de ovos de galinha caipira, a renovação da certificação orgânica para seus produtos agrícolas, uma patrulha policial rural, a construção de uma escola para crianças e adultos e de um parque infantil, o monitoramento do projeto de construção de moradias junto à Caixa Econômica, a realização de estudos de solo, a implantação de uma farmácia viva e ainda ações de resgate da cultura local.
Processo de Regularização
De acordo com a antropóloga Maria Ester Fortes, o processo de regularização fundiária de comunidades quilombolas é demorado, mas indispensável ao futuro das comunidades quilombolas, que têm visto suas áreas cada vez mais diminuídas com a especulação imobiliária.
As comunidades quilombolas são grupos étnicos predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana, que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias. Estima-se que em todo o país existam mais de três mil comunidades quilombolas.
Para terem seus territórios regularizados, as comunidades quilombolas devem encaminhar uma declaração na qual se identificam como comunidade remanescente de quilombo à Fundação Cultural Palmares, que expedirá uma certidão de autorreconhecimento em nome da mesma. Devem ainda encaminhar à Superintendência Regional do Incra uma solicitação formal de abertura dos procedimentos administrativos visando à regularização.
A regularização do território tem início com um estudo da área, a elaboração de relatório técnico que identifica e delimita o território da comunidade. Uma vez aprovado este relatório, os proprietários de imóveis rurais têm prazo para apresentar contestações ao Incra. Após esta fase, o instituto publica portaria de reconhecimento que declara os limites do território quilombola.
A fase final do procedimento corresponde à regularização fundiária, com a retirada de ocupantes não quilombolas por meio de desapropriação e/ou pagamento das benfeitorias e a demarcação do território. Ao final do processo, é concedido título de propriedade coletivo, pró-indiviso e em nome da associação dos moradores da área, registrado no cartório de imóveis, sem qualquer ônus financeiro para a comunidade beneficiada. Os títulos garantem a posse da terra, além do acesso a políticas públicas como educação, saúde e financiamentos por meio de créditos específicos. Atualmente, outros 28 processos para a regularização de territórios quilombolas encontram-se em andamento na Superintendência Regional do Incra na Paraíba.
De acordo com a presidente da Aacade/PB, Francimar Fernandes, 39 comunidades remanescentes de quilombos na Paraíba já possuem a Certidão de Autodefinição expedida pela Fundação Cultural Palmares.
Coletivo Gaia Parahyba
O coletivo é ligado à Rede Gaia Brasil e foi criado com a intenção de replicar em João Pessoa o curso internacional da Fundação Gaia Education, que é baseado em experiências de sustentabilidade testadas em ecovilas e trabalha com as quatro dimensões do ser humano: social, econômica, ecológica e visão de mundo. O curso não tem fins lucrativos e o valor da mensalidade é utilizado para custear alimentação, material empregado e as despesas com o deslocamento dos educadores.
Um dos 65 participantes do curso, realizado de março a outubro de 2016, Luciano Gomes de Maria, que contou com apoio financeiro e logístico da Emater para participar do curso e apresentou os produtos da comunidade para os colegas. A consultora ambiental Vivian Maitê Castro e a zootecnista Fernanda Quadro, do Coletivo Gaia Parahyba, orientaram o agricultor a comercializar os produtos em pequenas quantidades, na forma de cestas que respeitam a sazonalidade da produção da comunidade.
As vendas começaram pelo WhatsApp entre os colegas do curso e seus familiares. No início de novembro, integrantes do Coletivo Gaia Paraíba visitaram a comunidade Senhor do Bonfim, onde conheceram a história dos agricultores e as formas de produção.
“A nossa intenção é formar uma rede e fidelizar os compradores para que os agricultores tenham a garantia do escoamento da produção. A gente tenta se basear em um modelo que existe na França e em outros estados do Brasil e que se chama 'Comunidades que Sustentam a Agricultura'”, afirmou Vivian. “A intenção é comercializar só as cestas com produtos fixos, que é mais fácil para eles colherem e montarem”, explicou.
O Coletivo Gaia Paraíba estuda montar um site para atender a demanda crescente de compradores, e deve realizar uma oficina com os agricultores da comunidade para discutir suas necessidades e promover o empoderamento das famílias para que elas possam dar continuidade à comercialização das cestas. “Se funcionar bem o formato que a gente está pensando dá até para replicar com outros agricultores”, disse Vivian.
Publicado dia 23/12/2016 Fonte: Assessoria de Comunicação Social do Incra/PB - (83) 3049-9259 http://www.incra.gov.br/noticias/comunidade-quilombola-da-paraiba-comercializa-cestas-de-alimentos
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