Lilian C. B. Gomes & César Augusto Baldi
O destino da justiça aos quilombolas nas mãos do STF, outra vez.
O STF não deveria atender pressões e da bancada ruralista, que está na ofensiva contra direitos territoriais a favor do latifúndio tradicional.
Créditos da foto: Fernanda Castro / GEPR
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Contudo, o Decreto 4.887/2003 que regulamenta o art. 68 do ADCT está sub judice devido à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 3.239-9 de 2004, ajuizada pelo Partido da Frente Liberal (PFL), hoje denominado Democratas (DEM). Em 18 de abril de 2012, iniciou-se o julgamento com o voto do relator ministro Cezar Peluso, que acatou todos os pedidos autorais, indo ao ponto de desqualificar a própria luta dos ativistas de direitos humanos. Sem nos delongarmos no voto do Ministro-relator o que se deve afirmar é que ele primou pela ideia de um “discurso jurídico colonizado pela noção de segurança jurídica, voltado para a repetição do passado no presente e pouco adequado às funções jurídico-constitucionais de transformação e construção de um futuro livre, justo e solidário” (Camerini, 2011: 178) [1]. O voto repete uma concepção que mantém um regime jurídico-civilista da propriedade, fazendo vistas grossas ao que se passa na vida real, não “fossilizada”, dos grupos quilombolas com suas formas de criar, fazer e viver, também, reconhecidas na CF/88 no art. 216.
O voto do Ministro Cezar Peluso foi um concertado discurso de cunho formalista jurídico reivindicando argumentos procedimentais para que o Decreto seja considerado inconstitucional, numa espécie de “revival” daqueles já esgrimidos desde a década de 1980 para deslegitimar tanto o direito quilombola ao território quanto diversas lutas antirracistas no país. Existe uma vasta produção acadêmica, seja na antropologia, na ciência política e social bem como no direito, que têm analisado essa questão na perspectiva da legitimidade e necessário reconhecimento dos direitos territoriais e simbólicos desses grupos.
Portanto, os argumentos defendidos na inicial - e acatados pelo Ministro relator - mantêm os princípios do paradigma liberal estrito, na defesa da propriedade privada (não reconhecendo propriedades coletivas ou comunitárias, tal como já o fez, em inúmeras vezes, a Corte Interamericana), associando argumentos que ora se pautam nos temores de que a garantia desse direito aprofundaria a insegurança social, ora apelando para a própria insegurança jurídica; enfim, rudimentos estes já bastante conhecidos e mobilizados pelas elites conservadoras do País na defesa de seu status quo. A insegurança da posse em relação a tais comunidades negras passa a justificar eventual insegurança jurídica que sempre favoreceu a concentração de terras.
Além de todos esses questionamentos, o Relator afirma que o Decreto 4.887/2003 viola o princípio da reserva legal, ou seja, que o Decreto somente poderia regulamentar uma lei, jamais um dispositivo constitucional e que cabe ao Congresso Nacional editar uma lei relativa a essa matéria. Ora, de fato, vivêssemos em um país em que os Três Poderes constituídos cumprissem estritamente o seu papel – e inexistente qualquer omissão inconstitucional- o argumento do Ministro Relator deveria ter forte ressonância. É paradoxo justamente quando assiste-se, nos últimos anos, a forte protagonismo do Judiciário no Brasil, em especial no âmbito de direitos constitucionalmente assegurados e sistematicamente sonegados.
Seria o caso de questionar tal ativismo e defender uma autocontenção, justamente quando envolvem comunidades historicamente marginalizadas e vítimas de distintas formas de racismo, inclusive institucional? Recorde-se, por outro lado, o “desbloqueio” de determinadas pautas de direitos humanos justamente pelo STF, de que a união de pessoas do mesmo sexo e o financiamento público de campanha são bons exemplos. Quilombolas e indígenas, em boa parte, têm acreditado que somente a “justiça” no Brasil só será feita com a intervenção do Judiciário e do Executivo para frear a ganância por terras dos latifundiários no Brasil, presentes com muita força no Congresso Nacional.
A democracia parlamentar, nesse ponto, encontra-se, em parte, sequestrada pelo poder econômico. Assim, o Ministro preferiu o uso do argumento montesquiano, indicando caber ao Congresso Nacional legislar sobre o direito quilombola, o que implica, na prática, um processo de “desconstitucionalização” por via legislativa.
Essa posição do Ministro relator acaba atendendo pressões e pretensões da bancada ruralista, que, no presente momento, encontra-se em grande ofensa a direitos territoriais e defesa do latifúndio tradicional, de que são exemplos o PL 7735 sobre conhecimentos genéticos, a PEC 215 transferindo a demarcação de terras indígenas para o Legislativo e a mitigação de garantias socioambientais pela reforma do antigo Código Florestal.
A votação da ADI 3.239-9/2004 está pautada para ser retomada no STF nessa próxima 4ª feira, dia 03 de dezembro. Somente um voto - de um total de onze - foi proferido. Para além do art. 68 da Constituição Federal, o Decreto 4.887/2003, em consonância com tratados e a jurisprudência internacional, é o marco legal que melhor reconhece o direito à auto-atribuição, à trajetória histórica própria e às relações territoriais específicas, dentre outros elementos do direito quilombola. O que se verá na retomada da votação no STF é a capacidade dos Ministros dessa Casa de reconhecer as realidades concretas presentes em um País que, tão tardiamente, tenta criar condições legais para que todos os grupos sejam livres e iguais de fato, que reconheça que a justiça social não se faz sem justiça histórica nem justiça cognitiva.
Esperamos que seja possível repetir a frase do Ministro Carlos Ayres Britto ao pronunciar seu voto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 (ADPF/186/2009) ajuizada, também, pelo Democratas questionando a adoção do sistema de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB), rejeitada, por unanimidade, pelo STF: “O Brasil tem mais um motivo para se olhar no espelho da história e não corar de vergonha" [2].
NOTAS
[1] CAMERINI, João Carlos Bemerguy. Os quilombos perante o STF: a emergência de uma jurisprudência dos direitos étnicos (ADIN 3.239-9). Revista Direito GV, São Paulo, 8(1), p.. 157-182, jan-jun 2012.
[2] O Relatório completo do Ministro-Relator está disponível em:http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf
(*) Lilian C. B. Gomes é professora de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). César Augusto Baldi é Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando pela Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989 e organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004)
fonte: Carta Major
http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPrincipios-Fundamentais%2FO-destino-da-justica-aos-quilombolas-nas-maos-do-STF-outra-vez-%2F40%2F32347
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