Estamos
voltando do quilombo do Grilo com coração amargurado e triste: a estiagem está
acabando com tudo. A paisagem é árida e o olhar espraia num cenário cinzento
debaixo de um sol inclemente. Os pés de pinha estão murchos e com as frutas que não vingaram, queimadas pelo sol. O inhame
que prometia não enramou, até as águas das cisternas estão minguando. Bate na
mente o canto Asa Branca enquanto vou descendo a serra. Grilo é um lugar bonito
agarrado em cima de uma serra bem alta: quando não falta inverno é lindo, mas
se torna lugar difícil para quem vive
aqui há uma vida e de quando em vez se depara com a seca. No caminho encontro o
Severino que todo equipado está subindo de volta do mercado em sua moto. É
sábado e foi para a feira na cidade como todo morador da região. Quase não o
reconheço com sua cabeça miúda enfiada num capacete enorme e só do uma buzinada para cumprimentar
este guerreiro. Não da para parar nesta estrada acidentada e íngreme: o
motoqueiro pode ter dificuldade para arrancar de novo. Encontrar o Severino, de
repente me deu animo, foi quase uma bofetada na cara para quem andava
carregando as agruras do lugar e me lembrei da história deste homem que sempre
admirei. Severino é marido de Lourdes a louceira do Grilo. Os dois são uma nota
característica da comunidade de umas 60 famílias com suas casinhas situadas no
meio de pedras enormes, em cima da serra de onde se podem observas quatro cidades.
Já perto dos setenta, este casal é acolhedor, simpático: sua casinha é bem
limpinha e aconchegante.
Lembro-me
que uns três anos ou mais atrás, seu Severino que sempre andava num burro velho
para cima e para baixo da serra , inventou de comprar uma moto usada para substituir
o burro já meio cansado, alias os dois, ele e o o seu burro de estimação que ainda
hoje zela como fosse parte da família. É o companheiro no roçado. O casal não
tem filhos, mas ajudou a criar os sobrinhos, vários sobrinhos que depois
procuraram seu destino. Lembro-me que quando admirado, indaguei seu Severino
como fazia para andar no seu cavalo de aço, como ele dizia, numa serra onde não
tem um metro de chão plano, já de idade avançada, ele me respondeu que um dia
haveria de amansar esta fera Por enquanto treinaria só em cima da serra porque
a ladeira é perigosa demais e as pernas ainda não estavam firmes. Severino
teimou, teimou e consegui. Devagar andou ladeira abaixo e acima como para mostrar a sua nova amiga moto como se
andava pelas serras: com muita manha. Severino adoeceu, findou por causa de uma
gastrite ou talvez outra coisa pior que nunca soube o que fosse e que o reduziu
a pele e osso, ele que já era magrelo por natureza. Enfrentou uma cirurgia em
Campina Grande que o abriu do gogó a virilha. Ficou parado um tempão enquanto
tentava se recuperar. A moto o
aguardava, alias os dois se aguardavam para tempos mais favoráveis. Volta e
meia se consultava na cidade mas estava
muito difícil para ele. Um dia o encontrei no Grilo, me despedi dele porque por
causa de uma viagem eu demoraria para voltar. Descendo a serra tinha uma
sensação triste que nunca mais o teria reencontrado. Tinha ficado um nadinha e todo
mundo estava preparado para o pior. Mas este Severino honrou os Severinos deste
nordeste bravio e teimoso e escapou e la vai ele no seu cavalo de aço que
finalmente amansou, aos quase setenta anos, desafiando o mundo com uma calma e
uma mansidão sem fim como se tivesse feito uma coisa comum. Estas serras, este nordeste produziram gente
de raça, de garra que sabem enfrentar os percalços da vida. A seca do nordeste
moldurou gente para viver nas adversidades, gente que enfrenta as paradas piores
e que sabe esperar, agarrada ao seu torrão que muitas vezes teve que deixar por
causa da fome, mas por tempo porque sempre
bate a saudade e quando chove o sertanejo endoida para voltar, para
plantar, para encher os olhos do verde que de repente brota nas terras mais
secas e queimadas como bem cantava o
poeta na “A Volta da Asa Branca” (Luiz
Gonzaga). É o ciclo da vida, da “Morte e Vida Severina” (João Cabral de Melo
Neto).
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Severino |
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Severino, dona Lourdes, Maria num encontro com Luís |
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Imagens da seca |
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a pista para o Grilo |
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A casa de Severino e dona Lourdes |
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Imagens do Grilo |
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Severino procurando água |
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