segunda-feira, 21 de maio de 2012

SEVERINO E SEU CAVALO DE AÇO de Luís Zadra

Estamos voltando do quilombo do Grilo com coração amargurado e triste: a estiagem está acabando com tudo. A paisagem é árida e o olhar espraia num cenário cinzento debaixo de um sol inclemente. Os pés de pinha estão murchos e com as frutas que  não vingaram, queimadas pelo sol. O inhame que prometia não enramou, até as águas das cisternas estão minguando. Bate na mente o canto Asa Branca enquanto vou descendo a serra. Grilo é um lugar bonito agarrado em cima de uma serra bem alta: quando não falta inverno é lindo, mas se torna  lugar difícil para quem vive aqui há uma vida e de quando em vez se depara com a seca. No caminho encontro o Severino que todo equipado está subindo de volta do mercado em sua moto. É sábado e foi para a feira na cidade como todo morador da região. Quase não o reconheço com sua cabeça miúda enfiada num  capacete enorme e só do uma buzinada para cumprimentar este guerreiro. Não da para parar nesta estrada acidentada e íngreme: o motoqueiro pode ter dificuldade para arrancar de novo. Encontrar o Severino, de repente me deu animo, foi quase uma bofetada na cara para quem andava carregando as agruras do lugar e me lembrei da história deste homem que sempre admirei. Severino é marido de Lourdes a louceira do Grilo. Os dois são uma nota característica da comunidade de umas 60 famílias com suas casinhas situadas no meio de pedras enormes, em cima da serra de onde se podem observas quatro cidades. Já perto dos setenta, este casal é acolhedor, simpático: sua casinha é bem limpinha e aconchegante.
Lembro-me que uns três anos ou mais atrás, seu Severino que sempre andava num burro velho para cima e para baixo da serra , inventou de comprar uma moto usada para substituir o burro já meio cansado, alias os dois, ele e o o seu burro de estimação que ainda hoje zela como fosse parte da família. É o companheiro no roçado. O casal não tem filhos, mas ajudou a criar os sobrinhos, vários sobrinhos que depois procuraram seu destino. Lembro-me que quando admirado, indaguei seu Severino como fazia para andar no seu cavalo de aço, como ele dizia, numa serra onde não tem um metro de chão plano, já de idade avançada, ele me respondeu que um dia haveria de amansar esta fera Por enquanto treinaria só em cima da serra porque a ladeira é perigosa demais e as pernas ainda não estavam firmes. Severino teimou, teimou e consegui. Devagar andou ladeira abaixo e acima como  para mostrar a sua nova amiga moto como se andava pelas serras: com muita manha. Severino adoeceu, findou por causa de uma gastrite ou talvez outra coisa pior que nunca soube o que fosse e que o reduziu a pele e osso, ele que já era magrelo por natureza. Enfrentou uma cirurgia em Campina Grande que o abriu do gogó a virilha. Ficou parado um tempão enquanto tentava se  recuperar. A moto o aguardava, alias os dois se aguardavam para tempos mais favoráveis. Volta e meia se consultava na cidade  mas estava muito difícil para ele. Um dia o encontrei no Grilo, me despedi dele porque por causa de uma viagem eu demoraria para voltar. Descendo a serra tinha uma sensação triste que nunca mais o teria reencontrado. Tinha ficado um nadinha e todo mundo estava preparado para o pior. Mas este Severino honrou os Severinos deste nordeste bravio e teimoso e escapou e la vai ele no seu cavalo de aço que finalmente amansou, aos quase setenta anos, desafiando o mundo com uma calma e uma mansidão sem fim como se tivesse feito uma coisa comum.  Estas serras, este nordeste produziram gente de raça, de garra que sabem enfrentar os percalços da vida. A seca do nordeste moldurou gente para viver nas adversidades, gente que enfrenta as paradas piores e que sabe esperar, agarrada ao seu torrão que muitas vezes teve que deixar por causa da fome, mas por tempo porque sempre  bate a saudade e quando chove o sertanejo endoida para voltar, para plantar, para encher os olhos do verde que de repente brota nas terras mais secas e queimadas como bem  cantava o poeta na   “A Volta da Asa Branca” (Luiz Gonzaga). É o ciclo da vida, da “Morte e Vida Severina” (João Cabral de Melo Neto).

Severino
Severino, dona Lourdes, Maria num encontro com Luís
Imagens da seca


a pista para o Grilo

A casa de Severino e dona Lourdes
Imagens do Grilo

Severino procurando água




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