Ao longo de três
séculos foram deportados como escravos da África para o Brasil mais de quatro
milhões de africanos de várias etnias. O regime escravocrata foi duro e
desumano: o escravo era simplesmente considerado como mercadoria, uma peça como
outra qualquer, a ser usada e desfrutada ao máximo, vendida e até mesmo
eliminada.
O excesso de trabalho,
maus-tratos, castigos corporais e morais, fizeram aflorar nos escravos o
sentimento de protesto e revolta, tais como: trabalhos mal feitos, suicídios,
abortos, rebeldias coletivas e individuais e até a morte de seus donos e
feitores. A solução mais radical era a fuga para as matas, o que favoreceu a
formação de muitos quilombos que se tornaram uma grande preocupação para a
estabilidade do sistema escravocrata. Nesta nova realidade, os ex-escravos
criaram uma forma comunitária de sobrevivência como pessoas livres. Com o objetivo
de dar base legal para a repressão a estas formas de resistência, o rei do
Portugal, em uma carta ao Conselho Ultramarino no ano de 1740, definiu o
quilombo como: “Toda habitação de negros
fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos
levantados e nem se achem pilões neles”.
Esta associação
exclusiva com a fuga foi a característica principal dos quilombos do passado,
que se formaram e se desenvolveram durante o período escravocrata. O fenômeno,
no entanto, não parou depois da promulgação da “Lei Aurea”, datada de 13 de
maio de 1888, que declarou o fim da escravidão, mas assumiu formas diferentes,
não por isso menos importantes, pela sobrevivência de milhares de ex-escravos
expulsos das fazendas sem nenhuma forma de indenização. Os novos quilombos
foram se constituindo através de diferentes processos que vão desde ocupações
de terras livres, heranças, trocas de terra por serviços prestados ao Estado,
doações e até compras de terras. Na maioria dos casos, estas comunidades
formadas por negros, mas também índios e brancos, vivenciaram e continuam
vivendo na invisibilidade, esquecidas e excluídas por parte do poder público e
da sociedade.
Cem anos tiveram que se
passar para que o Estado brasileiro enfrentasse o problema da dívida histórica
com os quilombolas. Isso aconteceu com a aprovação da nova Constituição de 1988,
por meio do Artigo 68° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT) que afirma: “Aos remanescentes das
comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
A aplicação da lei foi,
por muito tempo, inviabilizada pela falta de decretos aplicativos, bem como
pela forte oposição de várias forças políticas ligadas aos interesses dos grandes
latifundiários, grileiros, mineradoras, entre outros.
Na década de 90, graças
às novas teorizações da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), “o termo
‘quilombo’ deixa de ser considerado unicamente como uma categoria histórica ou
uma definição jurídico-formal, para se transformar, nas mãos de centenas de
comunidades rurais e urbanas, em instrumento de luta pelo reconhecimento de
direitos territoriais” (TRECCANI, 2006).
A efetividade e a
aplicação do artigo 68 da Constituição se tornou realidade com o decreto nº
4.887 de 20 de novembro de 2003 editado no governo Lula. No artigo 2° se
afirma: “Consideram-se remanescentes das
comunidades de quilombos os grupos étnico-raciais segundo critérios de auto
atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada a opressão
histórica sofrida”.
O uso e a posse
coletiva da terra foram pilares fundamentais para as comunidades quilombolas adquirirem
a subsistência material, mas também, manterem seus costumes, tradições e
sentimentos de pertencimento a um lugar. É por isso que muito mais do que uma
procura arqueológica do passado, o resgate da posse e a permanência no
território se tornam garantia fundamental para a sobrevivência e continuação
destas comunidades.
Além de garantir o
direito à auto identificação como único critério para reconhecimento das
comunidades quilombolas, o Decreto 4.887/03 determinou a responsabilidade do
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA/INCRA) para o cumprimento das
determinações constitucionais no que diz respeito às áreas de quilombos no
Brasil.
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