quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

ESTA TERRA É NOSSA! UM DIA ESPECIAL PARA CAIANA DOS CRIOULOS

por Luís Zadra - AACADE

De longe se escutam os fogos pipocar anunciando a alegria pela posse da terra deste povo que tempo demais esperou por este momento. Embalados pelos zabumbas com Nalva e Cida animando os cantos e dando ritmo dançante à caminhada, o povo quilombola da Caiana desce a serra, seis quilômetros sob o sol escaldante das duas da tarde, para em cortejo tomar posse da terra. Nem as pedras do caminho sinuoso da serra, nem o sol inclemente desanimam esta pequena romaria que avança levando uma faixa com a imagem de Zumbi dos Palmares e de Santino, figura simbólica da Caiana.



Todo mundo embalado pela magia do momento. No pátio da Casa-Grande muita gente espera pelo cortejo que avança virado pela animação e forte emoção: o amplo terreiro está brilhado de limpo, recém varrido como acontece nos terreiros das casas no dia de festa e a sombra de uma arvore secular. espera pelos caminhantes.
A moldura deste quadro está perfeita: as colunas da casa grande com sobrado, o terreiro, os enormes muros de pedra que sobraram do engenho, as arvores antigas e generosas de sombra, tem até um enorme pau brasil, e agora as figuras coloridas do quadro que acabam de chegar.


O quadro agora mudou porque mudaram as personagens que o povoam. A moldura ficou: a terra, as arvores, os restos do que foi o cativeiro: bem que ficou de pé o imponente bueiro, testemunha e sentinela do passado. Saíram de cena os poucos donos brancos que aqui dominaram um povo escravizado e rostos de negros e negras brilhando de alegria agora dominam a cena.
A terra é nossa! Finalmente! Tem ainda quem duvida: este povo foi sempre enganado e a dúvida permanece. Como pode acontecer uma coisa dessa? Mas aconteceu e a partir do traquejo na terra que o povo vai sentir sua, nascerá uma nova motivação.
Dona Bina, negra idosa de mãos calejadas pela labuta no roçado, rosto surrado pelas agruras da vida mas de olho vivo, muito acanhada, é chamada no meio: ela que sempre plantou nesta terra mas à condição de deixar o roçado depois de colhida a fava (aqui se planta a melhor fava da região) para o gado dos donos, agora sabe que vai ser dona do que é seu e gado nenhum vai perturbar sua lavoura. Ela não diz uma palavra, mas sua presença é palavra.




Várias falas motivam o momento. A mais esperada é a do oficial de justiça que imite na posse o INCRA que depois a repassará aos quilombolas. O momento é solene e o povo sente que finalmente este direito sagrado lhe é reconhecido. Não é fácil passar da condição de excluídos da terra que testemunhou um passado doloroso, a donos desta mesma terra. Precisa tempo, mas as dúvidas não seguram as lagrimas de alegria que escorrem nos rostos negros.


A terra não será dividida: será uma escritura única para que o quilombo possa sobreviver com seu território intacto. Tudo será decidido no quilombo, para o bem de todos, a forma de uso desta terra, sem donos e sem capangas. Acredito que a mãe terra está em festa por este momento em que seus filhos poderão desfrutar do seu abraço aconchegante. O inverno está chegando e sementes serão lançadas, as sementes da liberdade e frutos abundantes e livres serão colhidos. Outras falas se seguem, da Paraíba, do lugar, de Brasília, muitas palmas. A voz forte e emocionada de uma quilombola salienta o significado da conquista da terra e dá o tom deste dia.


Uma favada a moda da Caiana é servida já no fim das falas, para dar o sabor de como será gostoso o futuro. E muita dança, ciranda e os zabumbas ecoando a mãe África. Nisto tudo sobressai poderosa a força da mulher quilombola que foi a guardiã da história do lugar, que segurou as pontas, de mãos calejadas sem perder a ternura e enfeitando os dias dançando, muitas vezes varando as noites tranquilas da serra.


Nenhum comentário:

Postar um comentário