quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

A comunidade negra de Santa Rosa na espera da certidão de autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares

Nas trilhas da luta pelo reconhecimento étnico quilombola da Comunidade Rural Santa Rosa em Boa Vista-PB: Um pouco do histórico da comunidade, através de relatos dos moradores e moradoras mais antigos.

por Cibelle Jovem Leal[1]

A Comunidade Rural Santa Rosa em Boa Vista, município do Cariri Oriental da Paraíba, se autorreconhece enquanto comunidade quilombola, tendo em vista o fenótipo das famílias que residem na comunidade rural caracteristicamente negra. Com cerca de quarenta e duas famílias de traços naturais e culturais negros, a comunidade se construiu com essa identidade. Haja vista, que lá viveram louceiras, parteiras e rezadeiras, práticas majoritárias de mulheres negras rurais, que significavam a forma de sobrevivência e de sustento das famílias.
Por sua vez, ao entrevistarmos Dona Joseane de Lima Monteiro[2], de quarenta e cinco anos, e a questionarmos sobre a sua identidade étnica, a mesma responde que é “negra com todo orgulho. A gente aqui é uma família só, desde meus avós que é tudo negro. Minha mãe fazia panela de barro, era parteira” (Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017)[3]. Nessa fala podemos perceber a relação que a entrevistada faz com as práticas de fabricação de louças e de realização de partos naturais com a identidade negra da família, que Joseane aponta ser uma só devido as relações conjugais que se estabeleceram entre primos e primas, mantendo o fenótipo negróide da comunidade.
Já, Edilene Monteiro chama atenção na sua fala quando expressa que há preconceito para com os moradores e moradoras da comunidade, quando são chamados/as de “negros de Santa Rosa” pela população urbana do município de Boa Vista. Mas que, no entanto, não entende como algo depreciativo, pois se sente orgulhosa em ter sua negritude, marca histórica da sua família.

A comunidade passa por muitos preconceitos, por serem chamados de “negros de Santa Rosa”, então não vendo algo pejorativo, tentamos mostrar que é um orgulho para a comunidade sermos chamados de negros. Minha identificação étnica é negra com orgulho, é de berço, é de origem. Minha família sempre incentivou a ter orgulho com a cor preta (Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017).

É importante salientar que muitas comunidades reconhecidas como comunidades remanescentes de quilombos possuem essa identificação por moradores das áreas urbanas e circunvizinhas, tais como constam em alguns relatórios antropológicos acerca de Caiana dos Crioulos e Matão - conhecidos como “os negros de Caiana” e “os negros do Matão”. Ou seja, uma identificação que possa tentar inferiorizá-los enquanto pessoas negras, é usada por estas como uma identidade de orgulho, de luta, de resistência e de empoderamento, a partir sobretudo do autorreconhecimento e do reconhecimento histórico, antropológico e social.
Além do mais, as comunidades que lutam pelo reconhecimento quilombola e/ou as que já o possuem vivem um isolamento espacial e cultural em relação à população urbana, quando as comunidades negras são rurais. Tendo em vista, a escassez de investimentos em infraestrutura, educação próxima e apropriada para a população quilombola para que fortaleça seu orgulho e o empoderamento da sua negritude, dirimindo o racismo que os/as afetam.
Na comunidade Santa Rosa de Boa Vista não é diferente, o que se apresenta historicamente quando na fala de seu José Severino Monteiro, conhecido como Zé Preto, um senhor de noventa e cinco anos que se diz neto de escravo e cabocla, ele relata que: “havia um clube, chamado Bicina. A gente se juntava lá, o povo de lá como nós, brincava lá, dançava a noite todinha, mas só nós, negro com negro.

As músicas era uma tal de mazuca[4], uns chamavam samba, outros chamavam forró. Nesse tempo não era forró, era samba (Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017). (Grifamos). Assim, percebemos que a relação histórica entre a população urbana de Boa Vista e a comunidade de Santa Rosa possui traços segregacionistas, delimitando os espaços de convivência entre brancos e negros.
Por conseguinte, outro fato nos chama atenção para isso no que concerne aos entretenimentos e festividades. Sabemos que em Boa Vista no mês de novembro se realiza a Festa do Padroeiro do município, a Festa do Bom Jesus dos Martírios, porém, a comunidade Santa Rosa possui sua própria comemoração da padroeira do lugar, Santa Rosa de Lima, realizada no mês de Agosto. E, a comunidade também está realizando a festa da Consciência Negra no mês de dezembro, posterior, à festividade urbana do padroeiro do município. Demarcando assim, uma autonomia cultural que permite pensar e construir a identidade quilombola da comunidade.
Por conseguinte, a luta da população de Santa Rosa pelo reconhecimento de quilombo remonta ao seu histórico, que é marcado pelo protagonismo de pessoas negras, que foram as primeiras habitantes da localidade, formando família e se sedentarizando na região para trabalhar em fazendas próximas. Algumas destas famílias receberam doações de terras, e estabeleceram o que hoje compreende a
comunidade, cuja qual não sabemos a exatidão da sua extensão territorial[5], mas sabemos que majoritariamente é habitada por famílias de pessoas negras que expressam o orgulho étnico da negritude. Tanto, que se organizaram e fundaram a Associação Comunitária Os Quilombolas de Santa Rosa, no dia 03 de abril de 2017.
A comunidade de Santa Rosa tem uma importância histórica para o município de Boa Vista, pois de acordo com Soares (2003), o povoamento da cidade se inicia com a formação da fazenda por Teodósio de Oliveira Lêdo, que ficou responsável em povoar o interior da “Capitania da Parayba” no período colonial brasileiro, que o tornou conhecido como o “desbravador dos sertões”. O capitão-mor, que ao dominar a região também escravizava indígenas para trabalharem nas suas fazendas, em especial a Fazenda Santa Rosa, onde vivia com a família entre os finais do século XVII. Consequentemente, sabemos que as fazendas no período escravocrata no Brasil funcionavam através do trabalho escravo de pessoas negras, ou seja, o processo de escravidão no nosso país não se restringiu apenas aos engenhos e Casas Grandes. Assim, o sertão da Capitania da Parayba, onde não haviam engenhos explorou a força de trabalho de escravizados/as em outras atividades, como na criação de animais e na agricultura.
Desse modo, para o funcionamento de uma fazenda se utilizava a mão-de-obra de escravos/as negros/as e indígenas e a Fazenda Santa Rosa traz as marcas de pessoas escravizadas desde a colonização do Brasil. Sem esquecermos que a arquitetura desse período era feita por pessoas escravizadas, sendo assim, o casarão onde viviam os Teodósio de Oliveira Lêdo foi erguido por aquelas que foram silenciadas, mas que protagonizaram nossa história, as pessoas negras.
Contudo, o único documento que nos traz informação acerca do povoamento de Boa Vista, a partir de Santa Rosa é o livro “Boa Vista de Santa Roza: De Fazenda à Municipalidade (1966-1997)” escrito por Francisco de Assis Ouriques Soares (2003). O que conseguimos reunir foram relatos das pessoas mais antigas da Comunidade, que chegaram na região por volta das duas primeiras décadas do século XX, o que não nos permite traçar uma relação direta entre essas famílias e as que habitaram o local durante o período colonial brasileiro. Entretanto, alguns dos relatos apresentam uma relação genealógica entre o entrevistado e as pessoas escravizadas, como é o caso de seu Zé Preto:

O meu avô foi escravo. Ele era natural do brejo, de um lugar chamado São Tomé. Aí ele veio tomar conta de uma fazenda aqui, de uma velha que tinha lá por Geraldo, uma senhora de engenho. Aí deram uma terrinha a ele aqui em Santa Rosa e formou família, aí ficou todo mundo aqui. Tudo é família aqui (Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017). (Grifamos).

Essa fala de seu Zé Preto, como é conhecido na comunidade, nos faz pensar sobre a migração de pessoas que foram escravas no Brejo da Paraíba para o interior do Estado nos finais do século XIX e início do século XX. Seu Zé Preto nasceu no ano de 1922, de fenótipo preto correspondente ao da sua família: “A família negra. A minha mãe e o meu pai é mesmo que tá me vendo (...) Eu me considero negro, filho de negro” (Seu Zé Preto-Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017), o que ratifica a genealogia étnica da família. Ao mesmo tempo que, o entrevistado cita a relação direta de parentes com a escravidão, pois seu “avô foi escravo” na região do Brejo. Ainda se referindo ao avô, seu Zé Preto nos conta:

Ele mesmo e a família falava que ele era um vaqueiro escravo. Ele falava que trabalhava muito e era obrigado a fazer tudo o que o patrão mandava fazer. Não tinha liberdade de nada, só faziam o que os patrões quisessem. A minha vó era filha de caboclo brabo, foi criada no mato, mas levaram para São Tomé e lá se casaram (Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017).
  

No depoimento de seu Zé, vemos que sua avó era de descendência indígena e que foi levada para a fazenda em São Tomé, onde conheceu seu avô e lá se casaram. Por sua vez, atentamos para a localização geográfica de São Tomé, pois há um sítio e um distrito com esse mesmo nome na cidade de Alagoa Nova, área que tem limite geográfico entre dois municípios que possuem comunidades remanescentes de quilombos: Areia que possui o Quilombo Nosso Senhor do Bonfim e Alagoa Grande onde se encontra a Comunidade Quilombola Caiana dos Crioulos. Portanto, São Tomé fica em uma região em que as heranças do povo negro estão presentes. Quando perguntamos se ele se considerava negro e descendente de escravo, ele nos respondeu o seguinte: “Me considero, também. Se eu sou mesmo, né? Eu sou neto de escravo” (Seu Zé Preto-Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017).
Além do mais, o mesmo informa que é filho natural de Santa Rosa e que a sua família, os Monteiros, foi uma das que ajudou a formar a comunidade, marcando nesta os traços negros que ela possui:
Nasci e me criei aqui, mesmo indo para fora trabalhar sempre voltava, sou filho natural daqui (...) Moravam quatro famílias. Tinha quatro casinhas (...) A família negra aqui de Santa Rosa era da minha parte, dos Monteiros. A família preta que tinha aqui, pertencem à família Monteiro (Seu Zé Preto-Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017).


Ele cita que viviam quatro famílias na comunidade, sendo que a dele era a negra.  Porém, hoje o que percebemos é que a grande maioria dos/as habitantes de Santa Rosa são etnicamente negros/as. A preponderância da negritude do lugar se deu historicamente com a migração de outras famílias negras, bem como, os casamentos entre os próprios moradores da localidade, mesmo havendo preconceito por parte das famílias brancas, como nos conta Dona Josefa Estevão de Melo, que está com noventa e três anos, e que foi morar em Santa Rosa no ano de 1933 aos oito anos de idade e casou com um homem negro da família Monteiro. Ela relata que: “A primeira geração de Santa Rosa foi a família Monteiro (...) Uma pessoa contou que os Monteiros tiveram relação com a escravidão. Sobre a família tudo morena, tudo aquilo outro, entre marido e mulher, tudo de uma relação só, tudo de um jeito só, para não se ‘espalhar’’” (Josefa Estevão de Melo – Entrevista realizada no dia 07 de novembro de 2018). A partir da fala de Zefa, como é chamada na comunidade e por pessoas mais íntimas, percebemos a segregação que havia para com as pessoas negras e o impedimento de casamentos entre pessoas negras e pessoas brancas “para não se espalhar”, ou seja, não se misturar e nem se expandir. Haja vista que, ela sofreu o mesmo quando foi casar com o seu noivo negro.
Ela nos narra um fato que ocorreu entre ela, a mãe e o pai, gerando uma discussão entre a família devido aos seus preparativos matrimoniais, cuja a mãe diz: “Seu Zé soube que Zefa tá se arrumando para casar? Mandou comprar pano para fazer lençol de cama, mandou bordar e mandou comprar pano para uma toalha de mesa. Ela vai é fugir para casar com aquele nêgo da raça de cativo” (Josefa Estevão de Melo – Entrevista realizada no dia 07 de novembro de 2018). E, Zefa respondeu: “Mãe! quem tá chamando de raça ruim, de nêgo cativo é a senhora. Finalmente, a senhora só diz uma coisa dessa porque é minha mãe, porque senão me pagava agora. A resposta que papai deu a ela foi essa: eu mato ela, mas ela não caso com nêgo (Josefa Estevão de Melo – Entrevista realizada no dia 07 de novembro de 2018). Dona Zefa ressalta, dessa forma, como sua mãe e seu pai corroboravam com o preconceito em relação ao seu namoro com um rapaz negro pertencente à família Monteiro, que tinha herança escrava, tanto que sua mãe chamava seu noivo de “nêgo cativo”, fazendo alusão à descendência de escravidão que o rapaz possuía.



Um outro morador entrevistado foi seu Antônio Silva, nascido em 1918, mas foi morar em Santa Rosa no ano de 1922 com quatro anos de idade. Ele também faz parte da família Monteiro, sendo primo e compadre de seu Zé Preto. Seu Antônio é um homem de tez negra, mas mesmo assim, perguntamos se seu pai e sua mãe eram negros, ele disse que “eram pretinhos. Pai Monteiro e Mãe Maria eram pretinhos. Eu sou um neguinho, desses negrinhos pretinhos” (risos) (Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017). Quando o questionamos se seus pais nasceram na comunidade Santa Rosa, ele respondeu que sua mãe sim, mas que seu pai era do Brejo, mais especificamente de Lagoa Seca, onde ele também nasceu.

Mamãe nasceu aqui em Santa Rosa, numa casa velha que tinha ali na beira da estrada. Papai era do Brejo. Eram primos um do outro, num sabe? Eu nasci em Lagoa Seca, de Lagoa Seca para Baixo, num lugar chamado de Mineiro, Mineiro de Lagoa Seca como é conhecido. Eu vim pra cá com quatro anos. Meu pai morava aqui, aí foi para Lagoa Seca e depois voltamos (Seu Antônio Silva - Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017).

O que corrobora com a informação de descendência familiar com pessoas negras do brejo paraibano, apontada por seu Zé Preto. Tendo em vista que, Lagoa Seca e Alagoa Nova possuem área limítrofe entre si, estando próximas às comunidades remanescentes quilombolas.
Por conseguinte, quando o questionamos se ele sabia alguma informação sobre descendência escrava em sua família, seu relato ratifica expresso por seu primo e compadre Zé Preto: “Tem. Papai Monteiro foi um. Ele morava daqui para Alagoa Nova” (Seu Antônio Silva – Entrevista realizada em 10 de abril de 2017). Veja que ele trata seu avô como “Papai Monteiro”, prática comum entre as famílias boavistenses denominar as avós e avôs com os termos “mamãe” e “papai” seguido com o sobrenome da família, designando a descendência a partir dos/as mais velhos/as.
Nesse sentido, o que podemos inferir é que Santa Rosa tem sua história e descendência negra, compreendendo um espaço de tempo superior a um século. Hoje a maioria das famílias que vivem na comunidade correspondem à hereditariedade da família Monteiro, que é negra e que possui reminiscência escrava, como os relatos que colhemos nos mostram.
Hoje, a família Monteiro se encontra em sua sexta geração desde que se estabeleceram na localidade. E, tendo em vista, tudo o que ouviu e viveu ao longo da sua vida na Comunidade Santa Rosa, fez com que, Edilene Monteiro, presidente da Associação Comunitária Os Quilombolas de Santa Rosa, reunisse os/as moradores/as e instigasse nestes/as o autorreconhecimento étnico negro quilombola. Se enveredando por um caminho muitas vezes moroso e burocrático, mas que vem promovendo a coesão, o empoderamento e o orgulho da identidade negra, lutando e resistindo contra o racismo. E, também, para mostrar a importância do reconhecimento quilombola para a comunidade rural Santa Rosa e o protagonismo do seu povo negro na formação e na história de uma das mais importantes cidades do interior da Paraíba, não devendo serem silenciados nas narrativas históricas sobre Boa Vista. Merecendo levantarem a bandeira quilombola em defesa dos seus direitos e do respeito cultural, que lhes foram relegados.





[1] Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG; Integrante do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas – Neabí da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.
[2] É importante ressaltar que todas as pessoas entrevistadas permitiram o uso do seu nome completo sem pseudônimos, pois mostram a sua participação e satisfação em contribuir para o processo de reconhecimento quilombola da comunidade.
[3] As entrevistas foram realizadas com o apoio de Elvira Rêgo e Edilene Monteiro.
[4] Também é uma dança do folclore nordestino derivado da Mazurca europeia. A mazurca é uma dança tradicional de origem polaca, feita por pares formando figuras e desenhos diferentes, em compasso de ¾ e tempo vivo. Característico é o ritmo pontuado, com acento típico no 2º e 3º tempo do compasso. A mazurca é semelhante à oberca, que é uma variante muito rápida. A mazurca era frequentemente utilizada pelos compositores da Polónia da era romântica, como Chopin, Moniuszko ou Wieniawski. Na Polónia já não se dança a mazurca, mas em Cabo Verde ainda hoje é dançada e tocada em quase todas as ilhas com incidência nas de Santo Antão, São Nicolau e Boavista. No Fogo existe o rabolo, que é uma variante da mazurca. Tornou-se também tradicional dançar-se mazurca no condado de Nice na França.
[5] É necessário um estudo geográfico e topográfico do lugar.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

AACADE entrega duas maquinas aos artesãos do quilombo Os Rufinos de Pombal.

Trabalhar com o barro é uma arte antiga que ainda é viva no quilombo Os Rufinos de Pombal. Mas não é fácil produzir uma quantidade adequada para vender se não se possui alguns equipamentos simples, mas essenciais.
No dia 28 de novembro a associação AACADE entregou aos artesãos uma maromba e uma trituradora que irão diminuir o esforço físico e favorecer o aumento da produção.

Agora falta só melhorar as condições de trabalho, possivelmente construindo um pequeno galpão onde abrigar os equipamentos e aumentar o espaço para os artesãos.

Depois da montagem dos equipamentos e de um bom almoço em companhia, passamos um tempo conversando com o patriarca seu Domingos.

Bom trabalho e até em breve.















segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Comunidade quilombola do Grilo (PB) tem novo acesso para escoar produção

Definir o sentimento ao ver a estrada que começou a abrir com as próprias mãos sendo pavimentada em paralelepípedos pelo Departamento de Estradas de Rodagem da Paraíba (DER/PB) é simples para Leonilda Coelho Tenório dos Santos, 57 anos: "Um sonho que se torna realidade". A obra, na comunidade quilombola do Grilo em Riachão do Bacamarte (PB), a cerca de 100 quilômetros de João Pessoa, é resultado da iniciativa solitária de dona Paquinha, como é conhecida Leonilda, ex-presidente da associação de moradores do local, e facilitará o acesso das 71 famílias da comunidade aos municípios vizinhos de Campina Grande, Ingá e Juarez Távora.

Créditos: Francimar Fernandes Zadra
De acordo com o diretor de Operações do DER/PB, Armando Marinho, a pavimentação da estrada, que tem cerca de um quilômetro e custará R$ 484 mil, está sendo realizada por meio do Programa Mais Trabalho. A previsão é a de que seja concluída até o final deste ano.

A pavimentação em paralelepípedos contribuirá para diminuir o isolamento e facilitar o escoamento da produção das famílias, que vivem atualmente do plantio de milho, fava, macaxeira, inhame, batata-doce e de, pelo menos, nove variedades de feijão.

Algumas também têm tirado seu sustento do cultivo de hortaliças; outras, de pequenas criações de animais, como cabras, bodes e perus. Há cerca de 15 anos, não havia no lugar da estrada mais do que uma trilha perigosa, com pedras e de espécies nativas cheias de espinhos, como xiquexiques e mandacarus.

Depois de um sonho, dona Paquinha comprou três marretas com as economias guardadas para reformar a casa simples onde vivia com o marido e quatro filhos. Depois de passar o dia no roçado e fazer os trabalhos de casa, ela quebrava pedras e arrancava o mato para alargar a trilha que levava a comunidade a estradas carroçáveis (nas quais é possível o tráfego de veículos).

"Abri a estrada com minhas próprias mãos. Quebrava as pedras à noite, às vezes até 1 hora da madrugada, porque é mais fácil de quebrar quando a pedra pega a quentura do dia", explicou. Ela contou que gastou quase R$ 9 mil em brita e cimento e dois anos e meio para tornar o caminho carroçável. "Deixei de ajeitar minha casa pra fazer isso", revelou a liderança, ao relembrar a tristeza sentida quando via famílias deixando a comunidade devido ao isolamento.
Dona Paquinha enfrentou a descrença dos vizinhos praticamente sozinha. "Era chamada de doida", disse. "Hoje me sinto realizada e vitoriosa porque comecei sozinha, sem dinheiro, com a cara e a coragem. Abri a estrada porque queria que desse para passar pelo menos um burro de carga e mesmo antes dessa obra de agora, já passava até caminhão e ônibus escolar. A vida mudou muito. Não somos mais isolados".

Cisternas 
Dona Paquinha também trabalha na construção de cisternas de placas por meio do Programa Cooperar, do Governo do Estado da Paraíba. Já foram construídas, desde 2016, 55 cisternas na Comunidade do Grilo - a maior parte pelas mãos de dona Paquinha.

"Com as cisternas mudou tudo, porque o lugar onde vivemos é seco, sem água. A gente andava várias léguas de burro para buscar água", disse, acrescentando que, atualmente, a Secretaria de Saúde do Estado faz periodicamente a análise da água armazenada nas cisternas da comunidade. Antes, segundo Paquinha, eram necessárias até três viagens de burro ou jumento até a barragem mais próxima, a cerca de meia hora, para conseguir água para a horta.

Até pouco tempo atrás, as famílias utilizam a pouca água proveniente de um poço perfurado pela comunidade no último trimestre de 2016. Agora, boa parte da água para a produção vem das cisternas. Regularização O processo de regularização do território de 139 hectares reivindicado está em fase de conclusão.

Em fevereiro de 2017, as famílias receberam da Superintendência Regional do Incra na Paraíba (Incra/PB) o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU), um título provisório garantindo a posse da área pela comunidade até a conclusão, pela Justiça Federal, da ação de desapropriação do terceiro e último imóvel incidente sobre o território quilombola.

Segundo a antropóloga do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra na Paraíba (Incra/PB) Maria Ester Fortes, embora ainda não esteja de posse do título definitivo, a comunidade já pode usufruir plenamente do território, com acesso pleno e autoridade sobre as áreas.

Para dona Paquinha, presidente da associação da comunidade do Grilo à época da conquista do título, ele significa libertação. "Hoje podemos plantar sem medo, fazer uma pequena barragem e investir na produção”, afirmou. Ela contou, ainda, que as famílias pagavam foro, uma taxa cobrada pelos proprietários das terras, para poderem plantar na área durante seis meses do ano. “Às vezes não dava nem tempo de colher o roçado porque o gado dos donos das terras comia tudo”, lembra.

A presidente da Associação de Apoio aos Assentamentos e Comunidades Afrodescendentes da Paraíba (Aacade/PB), Francimar Fernandes, afirmou que, em 2006, quando a entidade passou a acompanhar a situação da comunidade do Grilo, as famílias viviam "uma dura realidade". "Elas sofriam com a falta d'água, tinham pouco espaço para produzir. O difícil acesso também provocava problemas relacionados à falta de informação e de comunicação", afirmou Francimar.

Segundo Francimar, o papel da Aacade/PB "é contribuir para que as políticas públicas cheguem e, tudo isso, com o protagonismo das lideranças". Ela destacou como principal vitória a conquista do território, há dois anos, mesmo ainda sem terem o título definitivo.

História documentada 
O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) – peça inicial do processo administrativo de regularização dos territórios quilombolas – da comunidade do Grilo foi publicado em 25 de março de 2011. A elaboração do documento foi possível graças a um contrato firmado em março de 2008 entre o Incra/PB e a Fundação Parque Tecnológico da Paraíba (PaqTcPB). A equipe técnica responsável pelos trabalhos foi comandada por Mércia Rejane Rangel Batista, doutora em Antropologia Social e professora adjunta da Unidade Acadêmica de Sociologia e Antropologia do Centro de Humanidades da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

O RTID aponta os aspectos históricos e socioculturais das comunidades e é constituído por relatório antropológico, relatório agronômico e ambiental, levantamento fundiário, mapa e memorial descritivo da área, além da relação das famílias quilombolas cadastradas pelo Incra. De acordo com depoimentos dos moradores do Grilo transcritos no RTID, a comunidade se originou quando as terras do quilombola vizinho, Pedra D'Água, tornaram-se insuficientes para sustentar todas as famílias. Descendentes da Pedra D'Água se estabeleceram em terras dos arredores, que constituem as comunidades quilombolas do Grilo, do Matias e do Matão.

Ainda conforme consta no documento, as famílias atuais descendem, em grande parte, dos primos Manuel Dudá e Dôra, que, depois de casados, retornaram ao Grilo, onde Manuel havia nascido, na condição de moradores. No final da década de 1960, após 14 anos de trabalho, a família comprou um pequeno pedaço de terra onde hoje é o núcleo de moradia do Grilo. Ao se casarem, os filhos do casal foram se estabelecendo ao redor dos pais e passaram a depender das terras vizinhas para manter seus roçados, não mais como moradores, mas como arrendatários.

O RTID registra várias características e tradições, como a organização em torno dos laços de parentesco, a priorização dos casamentos endogâmicos (consanguíneos), as memórias de festa e trabalho constituídas pela lida no roçado próprio ou como mão de obra alugada, a confecção de louça de barro e do labirinto – tarefas marcadamente femininas –, as festas de São João e as celebrações animadas pelo coco de roda, pela ciranda e pelo samba.

As celebrações religiosas de caráter coletivo incluíam, segundo o relatório, as rezas ao longo de todo o mês de maio e as novenas realizadas nas casas e encerradas, muitas vezes, com uma roda de ciranda.

Atualmente, outros 29 processos para a regularização de territórios quilombolas estão em andamento no Incra/PB.
De acordo com a presidente da Aacade/PB, Francimar Fernandes, 39 comunidades remanescentes de quilombos na Paraíba já possuem a Certidão de Autodefinição expedida pela Fundação Cultural Palmares.

Os passos para a regularização de territórios quilombolas estão no site do Incra. "http://www.incra.gov.br/noticias/comunidade-quilombola-do-grilo-pb-tem-novo-acesso-para-escoar-producao"