Nas trilhas da luta pelo
reconhecimento étnico quilombola da Comunidade Rural Santa Rosa em Boa
Vista-PB: Um pouco do histórico da comunidade, através de relatos dos moradores
e moradoras mais antigos.
por Cibelle Jovem Leal[1]
A
Comunidade Rural Santa Rosa em Boa Vista, município do Cariri Oriental da
Paraíba, se autorreconhece enquanto comunidade quilombola, tendo em vista o
fenótipo das famílias que residem na comunidade rural caracteristicamente
negra. Com cerca de quarenta e duas famílias de traços naturais e culturais
negros, a comunidade se construiu com essa identidade. Haja vista, que lá
viveram louceiras, parteiras e rezadeiras, práticas majoritárias de mulheres
negras rurais, que significavam a forma de sobrevivência e de sustento das
famílias.
Por sua vez, ao entrevistarmos Dona
Joseane de Lima Monteiro[2], de
quarenta e cinco anos, e a questionarmos sobre a sua identidade étnica, a mesma
responde que é “negra com todo orgulho. A gente aqui é uma família só, desde
meus avós que é tudo negro. Minha mãe fazia panela de barro, era parteira”
(Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017)[3]. Nessa
fala podemos perceber a relação que a entrevistada faz com as práticas de
fabricação de louças e de realização de partos naturais com a identidade negra
da família, que Joseane aponta ser uma só devido as relações conjugais que se
estabeleceram entre primos e primas, mantendo o fenótipo negróide da
comunidade.
Já,
Edilene Monteiro chama atenção na sua fala quando expressa que há preconceito
para com os moradores e moradoras da comunidade, quando são chamados/as de
“negros de Santa Rosa” pela população urbana do município de Boa Vista. Mas
que, no entanto, não entende como algo depreciativo, pois se sente orgulhosa em
ter sua negritude, marca histórica da sua família.
A comunidade passa por muitos
preconceitos, por serem chamados de “negros de Santa Rosa”, então não vendo
algo pejorativo, tentamos mostrar que é um orgulho para a comunidade sermos
chamados de negros. Minha identificação étnica é negra com orgulho, é de berço,
é de origem. Minha família sempre incentivou a ter orgulho com a cor preta
(Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017).
É
importante salientar que muitas comunidades reconhecidas como comunidades
remanescentes de quilombos possuem essa identificação por moradores das áreas
urbanas e circunvizinhas, tais como constam em alguns relatórios antropológicos
acerca de Caiana dos Crioulos e Matão - conhecidos como “os negros de Caiana” e
“os negros do Matão”. Ou seja, uma identificação que possa tentar
inferiorizá-los enquanto pessoas negras, é usada por estas como uma identidade
de orgulho, de luta, de resistência e de empoderamento, a partir sobretudo do
autorreconhecimento e do reconhecimento histórico, antropológico e social.
Além
do mais, as comunidades que lutam pelo reconhecimento quilombola e/ou as que já
o possuem vivem um isolamento espacial e cultural em relação à população
urbana, quando as comunidades negras são rurais. Tendo em vista, a escassez de
investimentos em infraestrutura, educação próxima e apropriada para a população
quilombola para que fortaleça seu orgulho e o empoderamento da sua negritude,
dirimindo o racismo que os/as afetam.
Na
comunidade Santa Rosa de Boa Vista não é diferente, o que se apresenta
historicamente quando na fala de seu José Severino Monteiro, conhecido como Zé
Preto, um senhor de noventa e cinco anos que se diz neto de escravo e cabocla,
ele relata que: “havia um clube, chamado Bicina. A gente se juntava lá, o povo
de lá como nós, brincava lá, dançava a noite todinha, mas só nós, negro com negro.
As músicas era uma tal de mazuca[4], uns
chamavam samba, outros chamavam forró. Nesse tempo não era forró, era samba
(Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017). (Grifamos). Assim,
percebemos que a relação histórica entre a população urbana de Boa Vista e a
comunidade de Santa Rosa possui traços segregacionistas, delimitando os espaços
de convivência entre brancos e negros.
Por
conseguinte, outro fato nos chama atenção para isso no que concerne aos
entretenimentos e festividades. Sabemos que em Boa Vista no mês de novembro se
realiza a Festa do Padroeiro do município, a Festa do Bom Jesus dos Martírios,
porém, a comunidade Santa Rosa possui sua própria comemoração da padroeira do
lugar, Santa Rosa de Lima, realizada no mês de Agosto. E, a comunidade também
está realizando a festa da Consciência Negra no mês de dezembro, posterior, à
festividade urbana do padroeiro do município. Demarcando assim, uma autonomia
cultural que permite pensar e construir a identidade quilombola da comunidade.
Por
conseguinte, a luta da população de Santa Rosa pelo reconhecimento de quilombo
remonta ao seu histórico, que é marcado pelo protagonismo de pessoas negras,
que foram as primeiras habitantes da localidade, formando família e se
sedentarizando na região para trabalhar em fazendas próximas. Algumas destas
famílias receberam doações de terras, e estabeleceram o que hoje compreende a
comunidade, cuja qual não sabemos a exatidão da sua extensão territorial[5], mas sabemos que majoritariamente é habitada por famílias de pessoas negras que expressam o orgulho étnico da negritude. Tanto, que se organizaram e fundaram a Associação Comunitária Os Quilombolas de Santa Rosa, no dia 03 de abril de 2017.
comunidade, cuja qual não sabemos a exatidão da sua extensão territorial[5], mas sabemos que majoritariamente é habitada por famílias de pessoas negras que expressam o orgulho étnico da negritude. Tanto, que se organizaram e fundaram a Associação Comunitária Os Quilombolas de Santa Rosa, no dia 03 de abril de 2017.
A comunidade de Santa Rosa tem uma importância
histórica para o município de Boa Vista, pois de acordo com Soares (2003), o
povoamento da cidade se inicia com a formação da fazenda por Teodósio de
Oliveira Lêdo, que ficou responsável em povoar o interior da “Capitania da
Parayba” no período colonial brasileiro, que o tornou conhecido como o
“desbravador dos sertões”. O capitão-mor, que ao dominar a região também
escravizava indígenas para trabalharem nas suas fazendas, em especial a Fazenda
Santa Rosa, onde vivia com a família entre os finais do século XVII.
Consequentemente, sabemos que as fazendas no período escravocrata no Brasil
funcionavam através do trabalho escravo de pessoas negras, ou seja, o processo
de escravidão no nosso país não se restringiu apenas aos engenhos e Casas
Grandes. Assim, o sertão da Capitania da Parayba, onde não haviam engenhos
explorou a força de trabalho de escravizados/as em outras atividades, como na
criação de animais e na agricultura.
Desse
modo, para o funcionamento de uma fazenda se utilizava a mão-de-obra de
escravos/as negros/as e indígenas e a Fazenda Santa Rosa traz as marcas de
pessoas escravizadas desde a colonização do Brasil. Sem esquecermos que a
arquitetura desse período era feita por pessoas escravizadas, sendo assim, o casarão
onde viviam os Teodósio de Oliveira Lêdo foi erguido por aquelas que foram
silenciadas, mas que protagonizaram nossa história, as pessoas negras.
Contudo, o único documento que nos traz
informação acerca do povoamento de Boa Vista, a partir de Santa Rosa é o livro
“Boa Vista de Santa Roza: De Fazenda à Municipalidade (1966-1997)” escrito por
Francisco de Assis Ouriques Soares (2003). O que conseguimos reunir foram
relatos das pessoas mais antigas da Comunidade, que chegaram na região por
volta das duas primeiras décadas do século XX, o que não nos permite traçar uma
relação direta entre essas famílias e as que habitaram o local durante o
período colonial brasileiro. Entretanto, alguns dos relatos apresentam uma
relação genealógica entre o entrevistado e as pessoas escravizadas, como é o
caso de seu Zé Preto:
O meu avô foi escravo.
Ele era natural do brejo, de um lugar chamado São Tomé. Aí ele veio tomar conta
de uma fazenda aqui, de uma velha que tinha lá por Geraldo, uma senhora de
engenho. Aí deram uma terrinha a ele aqui em Santa Rosa e formou família, aí
ficou todo mundo aqui. Tudo é família aqui (Entrevista realizada no dia 10 de
abril de 2017). (Grifamos).
Essa
fala de seu Zé Preto, como é conhecido na comunidade, nos faz pensar sobre a
migração de pessoas que foram escravas no Brejo da Paraíba para o interior do
Estado nos finais do século XIX e início do século XX. Seu Zé Preto nasceu no
ano de 1922, de fenótipo preto correspondente ao da sua família: “A família
negra. A minha mãe e o meu pai é mesmo que tá me vendo (...) Eu me considero
negro, filho de negro” (Seu Zé Preto-Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017), o que
ratifica a genealogia étnica da família. Ao mesmo tempo que, o entrevistado
cita a relação direta de parentes com a escravidão, pois seu “avô foi escravo”
na região do Brejo. Ainda se referindo ao avô, seu Zé Preto nos conta:
Ele mesmo e a família falava que ele
era um vaqueiro escravo. Ele falava que trabalhava muito e era obrigado a fazer
tudo o que o patrão mandava fazer. Não tinha liberdade de nada, só faziam o que
os patrões quisessem. A minha vó era filha de caboclo brabo, foi criada no
mato, mas levaram para São Tomé e lá se casaram (Entrevista realizada no dia 10
de abril de 2017).
No depoimento de seu Zé, vemos que
sua avó era de descendência indígena e que foi levada para a fazenda em São
Tomé, onde conheceu seu avô e lá se casaram. Por sua vez, atentamos para a
localização geográfica de São Tomé, pois há um sítio e um distrito com esse
mesmo nome na cidade de Alagoa Nova, área que tem limite geográfico entre dois
municípios que possuem comunidades remanescentes de quilombos: Areia que possui
o Quilombo Nosso Senhor do Bonfim e Alagoa Grande onde se encontra a Comunidade
Quilombola Caiana dos Crioulos. Portanto, São Tomé fica em uma região em que as
heranças do povo negro estão presentes. Quando perguntamos se ele se
considerava negro e descendente de escravo, ele nos respondeu o seguinte: “Me
considero, também. Se eu sou mesmo, né? Eu sou neto de escravo” (Seu Zé
Preto-Entrevista realizada no dia 10 de abril de 2017).
Além
do mais, o mesmo informa que é filho natural de Santa Rosa e que a sua família,
os Monteiros, foi uma das que ajudou a formar a comunidade, marcando nesta os
traços negros que ela possui:
Nasci e me criei aqui, mesmo indo
para fora trabalhar sempre voltava, sou filho natural daqui (...) Moravam
quatro famílias. Tinha quatro casinhas (...) A família negra aqui de Santa Rosa
era da minha parte, dos Monteiros. A família preta que tinha aqui, pertencem à
família Monteiro (Seu Zé Preto-Entrevista realizada no dia 10 de abril de
2017).
Ele
cita que viviam quatro famílias na comunidade, sendo que a dele era a
negra. Porém, hoje o que percebemos é
que a grande maioria dos/as habitantes de Santa Rosa são etnicamente negros/as.
A preponderância da negritude do lugar se deu historicamente com a migração de
outras famílias negras, bem como, os casamentos entre os próprios moradores da
localidade, mesmo havendo preconceito por parte das famílias brancas, como nos
conta Dona Josefa Estevão de Melo, que está com noventa e três anos, e que foi
morar em Santa Rosa no ano de 1933 aos oito anos de idade e casou com um homem
negro da família Monteiro. Ela relata que: “A primeira geração de Santa Rosa
foi a família Monteiro (...) Uma pessoa contou que os Monteiros tiveram relação
com a escravidão. Sobre a família tudo morena, tudo aquilo outro, entre marido
e mulher, tudo de uma relação só, tudo de um jeito só, para não se ‘espalhar’’”
(Josefa Estevão de Melo – Entrevista realizada no dia 07 de novembro de 2018).
A partir da fala de Zefa, como é chamada na comunidade e por pessoas mais
íntimas, percebemos a segregação que havia para com as pessoas negras e o
impedimento de casamentos entre pessoas negras e pessoas brancas “para não se
espalhar”, ou seja, não se misturar e nem se expandir. Haja vista que, ela
sofreu o mesmo quando foi casar com o seu noivo negro.
Ela
nos narra um fato que ocorreu entre ela, a mãe e o pai, gerando uma discussão
entre a família devido aos seus preparativos matrimoniais, cuja a mãe diz: “Seu
Zé soube que Zefa tá se arrumando para casar? Mandou comprar pano para fazer
lençol de cama, mandou bordar e mandou comprar pano para uma toalha de mesa.
Ela vai é fugir para casar com aquele nêgo da raça de cativo” (Josefa Estevão de Melo – Entrevista
realizada no dia 07 de novembro de 2018). E, Zefa respondeu: “Mãe! quem tá
chamando de raça ruim, de nêgo cativo é a senhora. Finalmente, a senhora só diz
uma coisa dessa porque é minha mãe, porque senão me pagava agora. A resposta
que papai deu a ela foi essa: eu mato ela, mas ela não caso com nêgo (Josefa
Estevão de Melo – Entrevista realizada no dia 07 de novembro de 2018). Dona
Zefa ressalta, dessa forma, como sua mãe e seu pai corroboravam com o
preconceito em relação ao seu namoro com um rapaz negro pertencente à família
Monteiro, que tinha herança escrava, tanto que sua mãe chamava seu noivo de
“nêgo cativo”, fazendo alusão à descendência de escravidão que o rapaz possuía.
Um
outro morador entrevistado foi seu Antônio Silva, nascido em 1918, mas foi
morar em Santa Rosa no ano de 1922 com quatro anos de idade. Ele também faz
parte da família Monteiro, sendo primo e compadre de seu Zé Preto. Seu Antônio
é um homem de tez negra, mas mesmo assim, perguntamos se seu pai e sua mãe eram
negros, ele disse que “eram pretinhos. Pai Monteiro e Mãe Maria eram pretinhos.
Eu sou um neguinho, desses negrinhos pretinhos” (risos) (Entrevista realizada
no dia 10 de abril de 2017). Quando o questionamos se seus pais nasceram na
comunidade Santa Rosa, ele respondeu que sua mãe sim, mas que seu pai era do
Brejo, mais especificamente de Lagoa Seca, onde ele também nasceu.
Mamãe nasceu aqui em Santa Rosa,
numa casa velha que tinha ali na beira da estrada. Papai era do Brejo. Eram
primos um do outro, num sabe? Eu nasci em Lagoa Seca, de Lagoa
Seca para Baixo, num lugar chamado de Mineiro, Mineiro de Lagoa Seca como é
conhecido. Eu vim pra cá com quatro anos. Meu pai morava aqui, aí foi para
Lagoa Seca e depois voltamos (Seu Antônio Silva - Entrevista realizada no dia
10 de abril de 2017).
O
que corrobora com a informação de descendência familiar com pessoas negras do
brejo paraibano, apontada por seu Zé Preto. Tendo em vista que, Lagoa Seca e
Alagoa Nova possuem área limítrofe entre si, estando próximas às comunidades
remanescentes quilombolas.
Por
conseguinte, quando o questionamos se ele sabia alguma informação sobre
descendência escrava em sua família, seu relato ratifica expresso por seu primo
e compadre Zé Preto: “Tem. Papai Monteiro foi um. Ele morava daqui para Alagoa
Nova” (Seu Antônio Silva – Entrevista realizada em 10 de abril de 2017). Veja
que ele trata seu avô como “Papai Monteiro”, prática comum entre as famílias
boavistenses denominar as avós e avôs com os termos “mamãe” e “papai” seguido
com o sobrenome da família, designando a descendência a partir dos/as mais
velhos/as.
Nesse
sentido, o que podemos inferir é que Santa Rosa tem sua história e descendência
negra, compreendendo um espaço de tempo superior a um século. Hoje a maioria
das famílias que vivem na comunidade correspondem à hereditariedade da família
Monteiro, que é negra e que possui reminiscência escrava, como os relatos que
colhemos nos mostram.
Hoje,
a família Monteiro se encontra em sua sexta geração desde que se estabeleceram
na localidade. E, tendo em vista, tudo o que ouviu e viveu ao longo da sua vida
na Comunidade Santa Rosa, fez com que, Edilene Monteiro, presidente da
Associação Comunitária Os Quilombolas de Santa Rosa, reunisse os/as
moradores/as e instigasse nestes/as o autorreconhecimento étnico negro
quilombola. Se enveredando por um caminho muitas vezes moroso e burocrático,
mas que vem promovendo a coesão, o empoderamento e o orgulho da identidade
negra, lutando e resistindo contra o racismo. E, também, para mostrar a
importância do reconhecimento quilombola para a comunidade rural Santa Rosa e o
protagonismo do seu povo negro na formação e na história de uma das mais
importantes cidades do interior da Paraíba, não devendo serem silenciados nas
narrativas históricas sobre Boa Vista. Merecendo levantarem a bandeira
quilombola em defesa dos seus direitos e do respeito cultural, que lhes foram
relegados.
[1] Mestre em História
pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG; Integrante do Núcleo de
Estudos Afro-brasileiros e Indígenas – Neabí da Universidade Estadual da
Paraíba – UEPB.
[2] É importante
ressaltar que todas as pessoas entrevistadas permitiram o uso do seu nome
completo sem pseudônimos, pois mostram a sua participação e satisfação em
contribuir para o processo de reconhecimento quilombola da comunidade.
[4] Também é uma dança do
folclore nordestino derivado da Mazurca europeia. A mazurca é uma dança
tradicional de origem polaca, feita por pares formando figuras e desenhos
diferentes, em compasso de ¾ e tempo vivo. Característico é o ritmo pontuado,
com acento típico no 2º e 3º tempo do compasso. A mazurca é semelhante à
oberca, que é uma variante muito rápida. A mazurca era frequentemente utilizada
pelos compositores da Polónia da era romântica, como Chopin, Moniuszko ou
Wieniawski. Na Polónia já não se dança a mazurca, mas em Cabo Verde ainda hoje
é dançada e tocada em quase todas as ilhas com incidência nas de Santo Antão,
São Nicolau e Boavista. No Fogo existe o rabolo, que é uma variante da mazurca.
Tornou-se também tradicional dançar-se mazurca no condado de Nice na França.
[5] É necessário um
estudo geográfico e topográfico do lugar.