Do alto da para espraiar o olhar para ver a extensão da terra que logo mais os quilombolas vão ocupar, fruto da vontade e da resistência. São quase 200 hectares. Nesta terra os antepassados colheram muita amargura pela escravidão que os sujeitava. O laudo realizado pelos antropólogos do INCRA foi aceito por Brasília que reconheceu o território ao redor do Grilo como território quilombola. O dinheiro já esta liberado para indenizar os proprietários. Leonilda, se chama tudo isto: ela soube enfrentar a arrogância dos donos, e a crítica do povo em geral da cidade que fica bem abaixo do quilombo. Leonilda respira fundo o ar que cheira a milho novo e feijão verde. A lavoura está bonita e farta e, para o fim de semana, Leonilda está organizando um mutirão para apanhar o feijão. “Se tivesse dado mais uma chuva o milho seria bem melhor, mas tá bom, tá muito bom”.
Os olhos de Paquinha brilham e um bocado de mágoas e ressentimentos ficam amenizados pelo roçado já ganho. Foram quatro tentativas de plantio: a última, quase do desespero, deu certo. Nordestino é teimoso: não desiste. Planta, replanta, planta de novo e quando não da, mesmo apela a Deus: “ Deus não quis”. Leonilda é uma mulher franzina, resistente aos muitos sofrimentos e arroubos que a vida lhe proporcionou: marido e um filho dependentes de álcool ao extremo, incompreensões de pessoas da comunidade. É extremamente generosa, dedicada a comunidade.
Com suas mãos plantou muitos roçados, criou filhos, construiu casas, cisternas (ela é pedreira também), organizou a comunidade para melhorar o acesso íngreme do quilombo. Esta mulher de mãos calejadas e pele negra, lavrada pelo sol e os tempos muitas vezes inclementes, não perdeu a capacidade de sorrir, de chorar, de não se conformar com as agruras da vida. Está sonhando com a terra que logo mais vai ser de toda a comunidade. Já pensou como limpar a cacimba, onde vai fazer a horta; “eu gosto do roçado, gosto mexer na terra, plantar, colher, para mim e para os outros”. A cabeça e o coração dela estão aqui e daqui ela não sai. Nunca no passado teria pensado que um dia poderia pisar na terra mãe, liberta e benfazeja.
Eu gosto deste povo que tem um apego a terra, ao seu torrão onde os antepassados viviam escravizados pelos donos da terra que cobravam o foro e ainda exigiam que fosse deixado para os bichos da fazenda o que sobrasse depois da colheita. Este vai ser o capitulo final desta história passada que só trouxe amarguras: logo que tiverem colhido os legumes deverão deixar a palha para o gado do dono, pela última vez, a menos que a terra seja paga logo mais. Poucos acreditavam que este desfecho feliz poderia dar certo. Este povo sempre teve que engolir calado ofensas, desprezo e açoites.
Como a terra do quilombo Bomfim, esta também poderá ter nova vida, coberta de roçados, hortas e pomares, onde um povo liberto poderá plantar a vontade e colher do seu suor sem entregar aos donos uma parte do trabalho. Poderão sim partilhar com os mais fracos, não mais na marra, mas pela capacidade que ainda teima em viver no coração de muitos pobres.